Com o primeiro aniversário do series finale de Legacies pelas nossas costas, parece-me ter chegado por fim a altura apropriada para refletirmos um pouco sobre os vários elementos que levaram a que a série não tivesse o mesmo tipo de sucesso que as suas antecessoras. Caso não tenhas visto este spin-off de The Vampire Diaries e The Originals na sua íntegra, não te preocupes: não perdeste grande coisa. Se, por outro lado, seguiste a série e as nossas reviews enquanto esta esteve no ar, sabes que temos muito sobre que falar. Assim, pega nos teus snacks favoritos, talvez numa bebida e, sem mais demora, vamos a isto.
Criada por Julie Plec, Legacies teve a sua estreia em outubro de 2018 no canal The CW. O spin-off fornece uma continuação à história de Hope Mikaelson (interpretada por Danielle Rose Russell desde a 5.ª temporada de The Originals), a descendente de algumas das mais poderosas linhagens de vampiros, bruxas e lobisomens do universo criado por The Vampire Diaries. A adolescente frequenta a Salvatore School for the Young and Gifted, um colégio interno que tem como objetivo fornecer um porto de abrigo a jovens seres sobrenaturais, ensinando-os a controlar os seus poderes e a navegar os desafios de uma adolescência que, apesar de semelhante à do comum mortal, não é sem as suas diferenças.
Apesar de uma premissa promissora que havia, de facto, funcionado no passado, Legacies chegou ao fim após apenas quatro temporadas, sendo uma das últimas séries a sucumbir perante a grande purga de 2022. Este cancelamento não foi recebido com qualquer surpresa pela maioria da sua audiência, que, depois de uma temporada marcada pela saída de um elemento do elenco original, antecipava o sucedido. No entanto, o fracasso de Legacies dificilmente pode ser atribuído de forma exclusiva ao que aconteceu durante o seu trecho final, tendo os problemas do “pequeno spin-off que não queria” começado muito antes de ser cravado o último prego no seu caixão.
O legado esquecido
Enquanto spin-off, Legacies herdou das suas antecessoras não só um vasto universo já estabelecido, como também a obrigação de encontrar a sua própria voz dentro do mesmo. É um fardo, mas sejamos francos: quem quisesse rever The Vampire Diaries ou The Originals poderia fazê-lo a qualquer altura, pelo que algo um pouco diferente não seria visto com maus olhos. Contudo, enquanto há muito que pode e deve ser dito em relação à diferente tonalidade de Legacies – e, acredita, falaremos sobre isso –, um dos seus pecados capitais será para sempre a relação de negligência narrativa que manteve com as restantes séries.
Para um programa de televisão autointitulado “legados”, Legacies sempre usou o seu material de origem folgadamente, tratando com desmazelo a mitologia e personagens herdadas. Se a sua sólida fundação mitológica foi desrespeitada e dispersada com a introdução do malfadado “monstro da semana”, também as próprias personagens transportadas para este subproduto de The Vampire Diaries o foram. Por nome apenas, Hope, Josie (Kaylee Bryant) e Lizzie (Jenny Boyd) são os “legados” a quem a série deveria ter servido. Em vez disso, a bagagem por elas acumulada ao longo de ambas as séries originais e suas implicações foram frequentemente minimizadas de modo a favorecer um plot mais despreocupado, reduzindo assim o principal trio a uma mera sombra do que poderia ter sido.
É puramente antitético que Legacies tenha procurado capitalizar a ligação emotiva que a sua audiência tinha para com o source material ao mesmo tempo que o ignorava, mas isso não a impediu de tentar. Isto levou à existência de cameos e menções que, ao pretender evocar um sentimento nostálgico, surgiram em momentos que pouco contribuíram para o enredo. Se, em The Originals, a família de Hope moveu mundos e fundos pela jovem tríbrida, em Legacies pareciam demasiado ocupados para proporcionar qualquer tipo de apoio à personagem até os ratings o exigirem. Já a falta de Caroline (Candice Accola), a mãe de Josie e Lizzie, foi brevemente explicada no começo da série, mas a missão de que estava encarregada dificilmente justificou a sua ausência durante circunstâncias que, de facto, mereciam a sua visita, tendo a personagem feito a sua primeira e única aparição apenas no series finale de Legacies.
Tudo em todo o lado ao mesmo tempo
Como já foi mencionado, não é segredo que Legacies procurou diferenciar-se das restantes séries no seu universo ao adotar um tom menos pesado, optando por narrativas de grosso modo inconsequentes, vilões caricaturais e todo um roster de personagens-tipo. Durante a sua 1.ª temporada, isto conferiu ao programa uma vibe própria, em algo semelhante à de séries como Legends of Tomorrow: uma comic book series com uma premissa um pouco out-there mas, ainda assim, com personagens cativantes. Porém, Legacies rapidamente começou a alternar entre o seu estilo decididamente camp e um tom mais sóbrio através do qual procurava racionalizar a sua geral falta de seriedade. Assim, enquanto um episódio se apresentava mais assente na realidade, o seguinte regressava às suas extravagantes origens, dando azo a cenários como um musical, um sonho e até mesmo um universo alternativo.
Esta inconsistência de tonalidade entre episódios teve, por sua vez, um impacto negativo sobre as várias linhas narrativas e o modo como estas foram recebidas. A constante mudança não só levou a que a audiência da série nunca soubesse ao certo o que esperar de um episódio em particular, como também fez com que muitas storylines de peso não tivessem o impacto pretendido, contrastando o seu conteúdo e mensagem com o restante registo desse mesmo capítulo.
Acho justo afirmar que Legacies procurou ser, ao mesmo tempo, de tudo um pouco: comédia, drama, fantasia, film noir, western – a lista continua. Mas pensar que esta amálgama de géneros resultaria numa série coesa foi apenas outro dos muitos erros cometidos pela produção. Continuando neste tópico cuja inevitável conclusão será a máxima “menos é mais”, Legacies foi inconsistente até com as suas personagens, apresentando um leque demasiado vasto de figuras que, em última vista, não soube desenvolver. Ao invés de manter o foco sobre as personagens, principais e secundárias, introduzidas no decorrer da sua 1.ª temporada, a série desperdiçou o seu tempo não só com os monstros que apareciam a cada novo capítulo, mas também com outras tantas figuras cujo impacto sobre a narrativa se mostrou irrisório. Eventualmente, este desprezo refletiu-se na perda de atores (como foi o caso de Olivia Liang ou Peyton Alex Smith) e personagens de interesse para a audiência para projetos mais apelativos.
Uma protagonista injustiçada
Lobisomem, vampiro, bruxa. Estas são as três facções das quais Hope Mikaelson é descendente, fazendo da personagem a primeira tríbrida do universo de The Vampire Diaries e um dos mais poderosos seres sobrenaturais da sua mitologia. Quando confrontados com este tipo de personagens excessivamente poderosas, existem um punhado de vertentes que os escritores podem explorar de modo a lançar as bases do seu conflito. Pode-se criar uma força ainda maior para representar um desafio à altura da protagonista ou pode-se optar por apresentar-lhe uma luta interna, por exemplo. Idealmente, bons escritores procuram desenvolver a par e passo o conflito externo e interno. No entanto, Legacies colocou toda a bagagem de Hope nas traseiras, acabando por negligenciar aquilo que de melhor existia sobre a personagem em favor de um bulldozer sobrenatural que pouco mais uso tinha para além de lidar com qualquer que fosse a ameaça do momento.
De facto, o principal conflito de uma personagem como Hope Mikaelson deveria ser sempre a nível interno. Neste caso em particular, Legacies não tinha falta de material por onde pegar – de tal modo que seria possível escrever todo um artigo apenas sobre a sua protagonista. Crises de identidade devido à sua posição única no mundo sobrenatural, expectativas associadas à sua linhagem, o receio de se tornar nos seus pais, questões éticas e morais relativas aos seus poderes, o medo de perder aqueles à sua volta… Estas são apenas algumas das muitas opções viáveis que a série tinha a seu dispor e que, infelizmente, escolheu não explorar.
Outra crítica que deve ser feita ao modo como Legacies tratou a sua protagonista diz respeito à relação amorosa entre a personagem e Landon Kirby (interpretado por Aria Shahghasemi). Por razões que, sinceramente, sou ainda incapaz de compreender, poderes superiores acharam que seria benéfico para a série que a sua narrativa tivesse como foco Landon ao invés de Hope. Assim, storylines como a de Malivore – que deu início ao conflito externo de Legacies – começaram a pouco e pouco a mover-se na direção do personagem, colocando Hope numa posição secundária.
Por fim, a própria caracterização da protagonista sofreu com a presença de Landon na sua órbita. Quaisquer qualidades ou interesses possuídos pela jovem Mikaelson foram-se perdendo com o tempo. De certa forma (e aproveitando para fazer uma alusão a Barbie), ele era tudo; ela era apenas Hope.
Os riscos não assumidos
A existência de uma protagonista como Hope, todo-poderosa e sempre disposta a salvar o dia, foi um fator que sempre contribuiu para a falta de riscos sentida ao longo da série. Legacies teve várias outras oportunidades de elevar a fasquia do seu enredo – mas, à semelhança de outros tantos aspetos abordados ao longo deste artigo, resolveu optar pelo caminho mais fácil de percorrer. De forma geral, quando algo de mais arriscado ocorria, não tardava a ser resolvido. Esta regra foi aplicada a tudo um pouco, desde linhas narrativas que foram concretizadas de forma fácil e inconsequente, à própria morte e subsequente ressurreição de um punhado de personagens.
Associado ao facto de a narrativa ser quase circular no seu conteúdo e desenvolvimento, este retrocesso em qualquer tipo de decisão de peso resultou numa progressiva perda de interesse por parte de uma audiência que, tendo como referência a imprevisibilidade de The Vampire Diaries e The Originals, chegou à conclusão que o spin-off era demasiado suave.
Em suma, a série fez promessas que simplesmente não soube cumprir. O seu marketing inicial e a premissa lançada ao longo da sua 1.ª temporada pouco têm a ver com aquilo em que o spin-off se tornou. Ao invés de um drama sobre as tribulações de jovens adolescentes sobrenaturais com especial foco sobre um trio de personagens principais femininas, a audiência terminou com um confronto de titãs entre estes mesmos jovens adolescentes e deuses greco-romanos. Não, não acho descabido afirmar que a produção de Legacies perdeu o fio à meada.
Mesmo com meses de distância entre o final da série e a data em que termino de escrever este artigo, é impossível não sentir um certo nível de frustração para com este spin-off. De facto, Legacies tinha tudo para ser uma série de sucesso, inclusive feedback por parte da audiência e várias oportunidades ao longo do tempo para corrigir os seus muitos erros, mas nunca o fez. Quer por orgulho ou teimosia, continuou apenas a escavar a sua própria sepultura ao reforçar tudo aquilo de que os seus fãs e críticos se queixavam. Por esta razão, Legacies viverá para sempre na minha memória não como “o pequeno spin-off que podia” (uma alusão ao conto The Little Engine That Could), mas sim como “o pequeno spin-off que não queria”.