[Contém spoilers]
Quando vemos uma série ou um filme cujo livro lemos primeiro é impossível não fazer comparações ou desligar a adaptação do material de origem. Fiz isso com Sharp Objects, como não poderia deixar de ser. Adorei o livro; há qualquer coisa na escrita de Gillian Flynn que mexe comigo. As suas personagens principais, sempre femininas, são fascinantes, o enredo é envolvente, mas há sobretudo uma abordagem de um lado sinistro da vida, das relações humanas, capaz de arrepiar. Lembro-me de, ao ler Sharp Objects, me sentir desconfortável, tensa, suficientemente envolvida na história para ‘abraçar’ toda a dor de Camille. A própria Gillian Flynn, nos agradecimentos de um dos seus livros, faz menção ao marido e ao facto de ele ser capaz de dormir ao lado dela. Isso nunca mais me saiu da cabeça. De facto, a escritora tem uma mente prodigiosa ao ponto de ser assustadora. São só histórias, mas não é o tipo de ficção leve que se esquece, mas sim que fica connosco muito tempo e nos deixa a pensar sobre a obscura natureza humana, que Flynn parece compreender na perfeição.
A série foi perfeita a captar precisamente essa sensação que já tinha vivido com o livro. Há cenas brutais, como quando Camille se vê praticamente obrigada pela mãe a mostrar o seu corpo mutilado enquanto experimenta vestidos, à frente de Amma. A humilhação de Camille, a macabra satisfação de Adora, o sabermos que aquela mãe é a responsável por todo o sofrimento da filha, pelas suas cicatrizes físicas e emocionais… Até ter Cersei Lannister como mãe parece um sonho se a alternativa for Adora Crellin. Mil vezes Cersei, a sério!
Este último episódio de Sharp Objects foi emocionalmente brutal e, sem dúvida, o melhor da série. Nem imagino o quão difícil terá sido para Amy Adams dar vida a Camille. Uma personagem destas será certamente muito gratificante de interpretar, mas extremamente difícil. Patricia Clarkson também é extraordinária no papel da maléfica Adora e Eliza Scanlen é, ao mesmo tempo, adorável e assustadora com a sua Amma. O elenco principal é, sem dúvida, o ponto forte de uma série que pecou por um ritmo bastante lento. Nos primeiros cinco ou seis episódios parece que nada se passa e depois, de repente – pelo menos para aqueles que não conheciam o livro – somos confrontados com a verdade sobre o que aconteceu a Marian. Não senti que tivéssemos sido conduzidos para esta parte da história, mas sim atirados para ela. No livro tudo acontece de forma mais gradual, o ritmo é diferente, talvez por estarmos na mente de Camille e aqui sermos meros espectadores de tudo.
Não achei a série extraordinária, como pensei que pudesse ser. No entanto, acho que foi tão boa quanto possível naquilo que realmente importava, que era captar a essência de Camille, do seu sofrimento e da sua relação perturbadora com a família. No artigo que Camille escreveu, questiona-se a ela mesma: se o cuidar de Amma será apenas isso, querer cuidar da irmã, ou se será uma manifestação daquilo que Adora é. Não acredito nesta segunda hipótese. Também não acreditei nela ao ler o livro. Camille pode ter muitos defeitos, mas não tem o coração podre da mãe. Ela arriscou a vida para defender Amma das garras de Adora, depois de perceber que tinha perdido a primeira irmã da mesma forma.
O ambiente de Sharp Objects é sufocante, tal como tinha que ser. Os oito episódios contaram a história do livro e não quero mais, mas todos sabemos o quanto está na moda prolongar séries para além do seu material de origem. Não está prevista uma 2.ª temporada de Sharp Objects, pelo menos para já, mas não foi descartada a hipótese de a fazer acontecer. Considero que prolongar a história seria um erro. É certo que nem tudo foi explicado, que os créditos finais nos deram a saber muito pouco sobre os crimes, mas precisamos realmente de saber sempre tudo? Não faz parte da magia deixar algo por contar?
Sharp Objects não é o tipo de série de que todos gostarão, tal como sei que aconteceu com alguns dos meus colegas aqui do staff. Talvez também eu a tivesse visto sob um prisma diferente não fosse já ter lido o livro, mas é uma viagem que não me arrependo, nem por um minuto, de ter feito. Não adorei, mas gostei bastante e sei o quanto mexeu comigo.
Diana Sampaio