Precisamos de Falar Sobre… The Handmaid’s Tale
| 03 Out, 2018

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Bem sei que venho sempre atrasada falar das séries depois de todos já as terem visto, mas The Handmaid’s Tale é intemporal. O livro foi publicado em 1985 e, mais de trinta anos depois, a série não podia ser mais relevante. Acho que nunca deixará de o ser, aliás. Esta pode ser uma obra de ficção, mas não a sinto como isso. É claro que o regime de Gilead não existe e que os Estados Unidos continuam a ser os Estados Unidos, mas há muitos lugares do mundo em que as mulheres continuam a ser reprimidas e, infelizmente, não há muita esperança de que as coisas mudem. Esta série reflete também na perfeição o quanto é fácil que um regime extremista se instale e é isso que é assustador. Uma História muito recente é a prova disso: a Alemanha de Hitler, o regime de Pol Pot no Cambodja… Agora, inclusive, em muitos países europeus vive-se uma viragem de política, rumo a uma direita extremista que me assusta.

Mas vamos concentrar-nos em Gilead, a república que parece um retorno até à Idade Média ou pior! Quer dizer, há muitos dos confortos dos tempos modernos, mas os direitos humanos sofreram um retrocesso de vários séculos devido a um bando de religiosos fanáticos que impuseram os seus ideais bárbaros. Gilead é o lugar mais desprezível do mundo, mas a sua estrutura, a ritualidade do modo de vida, são extremamente interessantes de um ponto de vista sociológico. Acho que havia material para um segundo livro, que explicasse ao pormenor como tudo começou, expusesse os principais ‘arquitetos’ de Gilead e que descrevesse as ridículas leis e costumes, bem como o papel de cada um nesta nova sociedade. Seria uma obra de terror, mas muito interessante.

Conseguem imaginar viver num mundo em que ler um livro ou uma revista é um crime que vos custará um dedo? Um mundo em que não há qualquer espécie de individualidade e em que cada um enverga uma roupa igual à de todos os outros que pertencem a um mesmo grupo? Um mundo em que ninguém é livre de dizer aquilo que pensa porque qualquer pessoa pode ser uma fervorosa aliada do regime pronta a denunciar-vos? Um mundo em que a escravidão sexual e a violação são legais? Não há nada de mais nojento! Mas ser uma handmaid é um privilégio! [Ironia!] Sim, porque a alternativa são as Colónias, onde uma morte lenta causada por lixo tóxico é o destino. No entanto, como a maioria dos regimes, o de Gilead é incrivelmente hipócrita. O adultério é punido com a morte para o comum dos mortais, mas os poderosos e desprezíveis comandantes aproveitam-se das suas handmaids muito para além das Cerimónias. É um mundo de homens e as leis parecem não se aplicar a eles.

Gilead é governada por homens, mas não foi concebida só por eles. Quer dizer, sabemos que Serena teve um papel nisso, que fez discursos e que esteve ao lado de Fred até ser afastada precisamente pela sua condição de mulher. Deixou de ter uma palavra a dizer, relegada – como todas as outras mulheres – a um papel de insignificância em que não tem uma voz, não pode exercer uma profissão ou possuir bens. Tudo em nome de quê? Da natalidade. A infertilidade atingiu níveis elevadíssimos e a prioridade voltou-se para a reprodução. Mas a que custo? Contrariamente aos fanáticos de Gilead, eu sou ateia, mas se Deus não deixa nada ao acaso, talvez Ele ache que a humanidade é tão cruel que mais vale deixá-la extinguir-se. Porque o que estes homens e mulheres criaram é um mundo onde ninguém de mente sã quer criar um filho. É claro que estas crianças vão crescer num mundo podre sem comparação com uma vida em liberdade, mas o que é que as filhas de June ou Janine pensariam dos seus papás Comandantes ou das mamãs Esposas se soubessem o que eles fizeram às suas verdadeiras mães? Se tudo correr bem, a filha de June terá uma vida fora de Gilead, mas ela é apenas UMA sortuda.

Tivemos a oportunidade de ver um pouco da vida nas Colónias, mas os papéis mais explorados são os de Handmaid e Wife. Não consigo imaginar a humilhação e o sofrimento de se ser usada como incubadora humana, à mercê de violações, mas também considero que o papel das Wives é extremamente ingrato. Quer dizer, muitas delas se calhar também não concordam com aquilo, sendo algo para o qual foram arrastadas. Os maridos violam mulheres enquanto elas estão ali a assistir, a lembrarem-se que nunca lhes poderão dar filhos. Isto remete-nos para a infidelidade ser considerada culpa exclusiva das mulheres. Gilead até verga a ciência aos seus próprios ideais! Só isso foi capaz de proporcionar a ascensão aos mais elevados cargos de inúteis inférteis como Fred. No topo da hierarquia de uma sociedade que tem como principal prioridade reproduzir-se não deveriam estar homens comprovadamente capazes de fazer filhos? Ou então porque é que ninguém se lembrou de se livrar das Esposas e de fazer casamentos entre os Comandantes e mulheres férteis?

O pão nosso de cada dia em Gilead é a humilhação, se se for mulher. Ainda há certamente alguns homens bons para quem será incrivelmente difícil assistir a tudo o que se passa, mas não são eles que são violados. Contudo, acho que também isto se trata de uma questão de perspetiva. Apesar de Gilead ser um mundo de homens, as mulheres são as verdadeiras protagonistas desta história e é por elas que sentimos empatia. Sei que o facto de eu própria ser mulher condiciona a minha forma de encarar as coisas. Talvez se fosse homem tivesse passado algum tempo a pensar no que será para os homens comuns, como Luke, imaginar a mulher como escrava sexual, sem saber sequer se ainda estaria viva, e privado da filha. Confesso que não o fiz e talvez devesse. Em vez disso, ocupei-me a odiar Fred com toda a minha energia. Ele representa todos aqueles homens, a hipocrisia de criar um regime, de obrigar todos os outros a respeitá-lo, mas não ele. Fred é o sacana que deixa June jogar Scrabble, é o sacana que deixa que Serena assuma o trabalho dele enquanto está no hospital a recuperar do atentado levado a cabo por uma corajosa handmaid, mas que depois pune a mulher por esta ter pedido a ajuda de June. Ele espancou-a e obrigou June a assistir, já para não mencionar que, mais tarde, no final da temporada, foi o responsável por Serena ter ficado sem um dedo. Odiei-o tanto! Serena não é um anjo, mas é mulher dele, devia protegê-la! Nos flashbacks dos tempos anteriores a Gilead eles pareciam felizes como casal e agora são aquilo que se vê.

Os flashbacks foram essenciais para compreendermos – e conhecermos – melhor alguns dos personagens e para termos algum contexto, foram relevantes e nunca deram a sensação de estarem ali só para fazer cumprir uma certa duração de um episódio. No entanto, a verdade é que The Handmaid’s Tale é uma série muito forte, emocionalmente brutal por aquilo que retrata e é do presente da sua história que vive realmente. Ansiei sempre por ver as cenas de June no contexto da casa dos Waterford. A relação complexa entre ela e Serena é fascinante! Adorei ver Emily e Janine no ecrã e todos os momentos em que despontava a esperança de que alguém estava a fazer alguma coisa, mesmo que a uma escala muito pequena, para acabar com Gilead. As ditaduras acabam, geralmente, e esta também irá terminar, certamente, mas muitas vidas terão sido destruídas até lá. Muitas vidas ter-se-ão mesmo perdido, irrevogavelmente. Quantas gerações serão precisas para sarar o sofrimento que Gilead impôs? Quantas gerações serão necessárias para expiar tamanho mal? Todo o tempo do mundo não será suficiente.

Li o livro uns meses antes de ver a série e confesso que fiquei muito desiludida, mas foram várias as pessoas a quem ouvi dizer que a série era muito melhor e é-o, de facto. June é uma personagem formidável e Elisabeth Moss faz um trabalho extraordinário no seu papel. Alexis Bledel, que até agora via apenas como a irritante Rory de Gilmore Girls, também é uma personagem fantástica, bem como a Janine de Madeline Brewer. No entanto, tenho que admitir que Serena é a minha personagem favorita, como eu já desconfiava antes mesmo de ter começado a ver a série, já que tenho um longo historial de gostar de personagens que tenho a perfeita noção que deveria odiar. Serena faz coisas horríveis durante estas duas temporadas, mas por cada coisa terrível que faz parece que há, em paralelo, algo que mostra que poderá ter um lado bom por baixo de todo aquele coração de gelo. Talvez esteja só a arranjar desculpas, mas acho que Serena – e muitos outros – nunca imaginou que a sua visão resultaria naquilo. Não acho que ela se sinta grata pela vida que tem e pelo estado geral das coisas, mas sim que esteja a tentar sobreviver também e a agarrar-se à ideia de que ter um filho seria a recompensa. Acho que é precisamente o amor por esta criança que a torna uma pessoa melhor. Quer dizer, ela abdicou de Nichole. Abdicou da coisa que mais queria no mundo porque sabia que era o melhor para a bebé. E a que custo pessoal? Talvez tenha salvo a sua alma e garantido a redenção, mas receio pela vida dela. Pela de June também, mas ao menos ela tem algo a que se agarrar: Hannah, Luke, Moira. As pessoas que ela mais ama estão vivas. Serena não tem ninguém. Fred não é ninguém. Ninguém com que valha a pena contar, pelo menos.

The Handmaid’s Tale tem um universo muito rico que vale a pena continuar a explorar, mas quero também ver uma revolução que ponha fim à desprezível república de Gilead. Quem são os verdadeiros apoiantes do regime e quem são aqueles que estão em silêncio porque têm medo das punições? Que volte a haver um mundo em que uma mulher pode amar outra mulher, um mundo em que pais e filhos possam voltar a estar juntos, um mundo em que todos têm escolhas e em que a vida não pareça um pesadelo saído de um livro de George Orwell. Esta série vale tanto a pena!

Diana Sampaio

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