[Contém spoilers de Butterfly e Pose a partir do 3.º parágrafo]
A comunidade LGBTQ+ está a conquistar cada vez maior visibilidade, o que é fundamental para conseguir aceitação junto de todos. Junho foi escolhido como Pride Month devido à Rebelião Stonewall (mais conhecido por Stonewall riots), que ocorreu nesse mês, em 1969, em Nova Iorque. Há mais de 50 anos, Stonewall representou um momento decisivo para os direitos do Movimento de Libertação Gay (Gay Liberation Movement) nos Estados Unidos. Muita coisa mudou para melhor nestas últimas décadas, mas continua a haver países onde ser-se gay ou trans é um crime, inclusive punível com a morte. Na Europa, e no Ocidente no geral, cada um de nós é livre de ser quem quiser aos olhos da lei. No entanto, muitas das vezes isso não significa aceitação e traduz-se, em tantas ocasiões, em discriminação. Discriminação baseada em preconceitos e desinformação, muito visível quando se percebe que tantos não são sequer capazes de perceber a diferença entre orientação sexual e identidade de género. Discriminação que faz com que muitas pessoas sintam medo de contar à família ou aos amigos que são gay, trans, bi, pansexual… Discriminação que impede que muitos vivam de forma verdadeiramente livre aquilo que são.
“The real violence, the violence I realized was unforgivable, is the violence we do to ourselves when we’re too afraid to be who we really are”. Reconhecem a frase? Foi dita por Nomi Marks em Sense8 e tem muito a ver com a própria experiência da personagem, que viveu muito tempo com medo de ser quem realmente é por ter sido educada por pais que achavam que havia algo de errado com ela. Não há nada de errado em relação a Nomi, tal como não há nada de errado em relação a ninguém por ser uma das letras de LGBTQ+. Assim sendo, para celebrar este mês do Pride Month, vamos falar de algumas histórias relevantes que as séries contaram para nos dar a conhecer a realidade de pessoas trans e que, esperamos, tenham ajudado a fazer deste mundo um lugar mais empático e tolerante.
As narrativas sobre personagens trans nas séries têm-se debruçado, sobretudo, em pessoas adultas. No entanto, Butterfly, uma minissérie britânica de apenas três episódios, dá-nos a conhecer a história de uma criança de 11 anos. Maxine nasceu Max, mas desde muito pequena percebeu que não era um rapazinho. Não se sentia bem nesse corpo, não gostava das coisas de que a maioria dos meninos parecia retirar prazer, identificando-se muito mais com as roupas, com as brincadeiras, habitualmente associadas a meninas. Não se tratava de uma fase, como muitas pessoas gostam de acreditar. Ser uma menina presa num corpo de rapaz foi um desespero que acompanhou Maxine desde tenra idade até à pré-adolescência, altura em que os pais foram obrigados a confrontar-se seriamente com a realidade em que a filha vivia, sem poderem ignorar mais a situação.
Não foi fácil para ninguém, claro que não. Só que chegou um momento em que as coisas se resumiram a isto: Maxine não aguentava a ideia de viver como menino, como rapaz, como homem. Então os pais perceberam que tinham de lutar pela felicidade – e pela vida – daquela criança. E lutaram! Ninguém lutou mais do que aquela mãe! Ninguém teve mais dificuldade do que aquele pai, mas ele também lutou. E Lily foi a melhor defensora e leal irmã mais velha que alguém poderia pedir durante todo este percurso! Não foi uma jornada perfeita, esta família cometeu erros, mas foi perfeita o suficiente para que todos aprendessem e crescessem o suficiente. Maxine vai crescer para ter o corpo com o qual se identifica e não vai precisar de fazer isso sozinha, sem o apoio da família.
Numa idade um pouco mais avançada do que é retratado em Butterfly, atualmente têm aparecido várias histórias trans em séries, desde a adolescência até aos chamados jovens adultos. Chilling Adventures of Sabrina apresenta um character development fantástico de Susie e a sua transição para Theo, um adolescente transgénero que conta com o apoio do seu grupo de amigos e também do pai, apesar de este se mostrar receoso inicialmente. De destacar que Lachlan Watson, que interpreta Theo, é non-binary, com os pronomes they/them, e ajudou na construção da personagem com a sua experiência de vida, o que provavelmente fez toda a diferença neste arco da série. Esta é a prova do quão importante é termos personagens trans representadas por atores trans ou pelo menos não cisgénero. Só uma pessoa não cisgénero conhece verdadeiramente o que significa não se identificar com o género biológico atribuído e registado à nascença.
É ainda impossível escrever sobre o orgulho trans sem mencionar Euphoria. A série inovadora obteve um sucesso imediato na forma crua e real como explora um grupo de adolescentes norte-americanos, incluindo Jules, uma transexual que se encontra no processo de transição, demonstrado com as suas injeções hormonais, depois de ter passado a infância toda numa batalha com depressões e disforia de género. Com um arco secundário, mas não menos relevante, Good Girls também inclui na sua história uma personagem pré-adolescente transgénero, filho de uma das protagonistas e que se encontra durante o processo inicial de transição.
Blanca, Angel, Elektra, Lulu e Candy, uma parte vital do núcleo de Pose, são interpretadas por atrizes também elas trans (sendo que uma delas é non-binary), numa série com o maior elenco transgénero da televisão. Estamos nos anos 80, em Nova Iorque, e a SIDA mata, sem dó nem piedade. Estas pessoas, que toda a vida enfrentaram ódio e discriminação, estão cada vez mais desprotegidas, mas dentro da ball culture, uma subcultura da comunidade LGBTQ+, podem ser quem são, sem medos. É aqui que formam famílias com quem podem contar como nunca puderam com os do seu próprio sangue. Blanca tem SIDA e é uma verdadeira mãe para uma série de jovens que não têm ninguém. Deu-lhes um teto e alimentou-os, mas o mais importante de tudo é que os amou e lhes mostrou que tinham o direito de sonhar em ser alguém e conquistar grandes coisas no mundo.
Para miúdos que nunca tiveram amor incondicional isso é tudo! Mais do que uma mãe, Blanca é um verdadeiro pilar dentro da comunidade, alguém com quem qualquer pessoa pode contar, nos melhores e nos piores momentos. Angel é uma das miúdas que Blanca ajudou e amou. Dotada de uma beleza incrível, Angel sonhava com uma carreira de modelo, mas não lhe passava pela cabeça que poderia chegar realmente a algum lado. Talvez o seu talento e beleza não tivessem sido o suficiente, mas com o incentivo da sua família do coração, ela não desiste. Elektra, Lulu e Candy são outras pessoas que tiveram a sorte de se cruzaram com Blanca. Só que Candy morreu cedo demais, às mãos de um daqueles imbecis que acham que a vida das prostitutas não têm qualquer valor. Não é uma das melhores personagens da série, mas houve algumas narrativas interessantes à volta dela, como quando recorreu aos manhosos implantes de silicone de Miss Orlando. Candy não podia pagar o real deal e, contrariamente a muitos dos membros dos ballrooms, era mesmo magrinha, sem as tão apreciadas curvas que faziam sucesso. Conhecem o termo fat shaming? Candy era alvo de algo a que podíamos chamar skinny shaming quando desfilava. A forma como Pray Tell a tratava era demasiado dura, precisamente o contrário daquilo que devia ser o espírito da comunidade. Podem dizer que não era mesmo malícia, mas achei sempre indecente. Candy podia não ter as curvas de Lulu ou a elegância inata de Elektra (ninguém tem), mas e depois?
Elektra é precisamente a mulher que não aceita tretas de ninguém e basicamente aquela pessoa que não gosta de outras pessoas. Não é muito fácil simpatizar-se com ela, mas podem crer que é fácil admirá-la. Esta mulher sustentava a sua ‘casa’ com a ajuda de um… vamos chamar-lhe amante. No entanto, quando Elektra decidiu que faria a cirurgia que a tornaria uma mulher em todos os aspetos, ele deu o fora, deixando-a por sua própria conta. Teria sido fácil para ela desistir e manter a sua confortável vida, mas Elektra não seria capaz de abdicar da coisa que mais queria por nada neste mundo. Foi uma jornada muito interessante de assistir, tal como foram todas as desta série. Para além de contar a história de pessoas que não têm tempo de ecrã muito frequentemente, Pose apostou num elenco que saberá, melhor do que ninguém, compreender os desafios que as suas personagens enfrentam, conferindo uma alma enorme à série.
Passando de narrativas muito específicas com personagens transgénero como destaque, vale ainda a pena mencionar mais brevemente três plots mais curtos com que Grey’s Anatomy e Good Trouble nos presentearam. O primeiro refere-se a Donna Gibson, uma paciente de Mark Sloan num episódio da 3.ª temporada, corria o ano de 2006. Nos tempos mais recentes, séries como Supergirl, Orange Is the New Black, Transparent ou Sense8 deram visibilidade a pessoas trans, mas há quase 15 anos não havia ainda muito espaço na televisão para este tipo de narrativas. Assim sendo, foi refrescante ver Grey’s, no auge da sua popularidade, trazer até nós a história de uma paciente que ia ser submetida a uma cirurgia para reatribuição de sexo, mas que foi diagnosticada com cancro da mama. Em termos clínicos a situação era muito clara: as hormonas que Donna estava a tomar para a transição alimentavam o cancro, portanto para começar o tratamento que a salvaria da doença ela tinha que largar a terapia hormonal. Donna não aceitou isso. Tudo o que ela quis fazer foi continuar a tomar as hormonas porque queria lutar com o cancro como a mulher que sabe e sente que é. Para aquelas pessoas que não entendem a necessidade de alguém mudar de sexo para viver no único corpo no qual sabe que se sentirá bem isto pode ser uma lição de aprendizagem. Ninguém passa por uma transição, seja de homem para mulher, seja de mulher para homem, por capricho. Porque é que aqueles que têm a sorte de nascer naquele que sentem que é o seu corpo, não percebem a necessidade de outros vivenciarem também isso?
Temos ainda Casey Parker, um dos residentes do Grey Sloan Memorial Hospital. O personagem não tem tido muito tempo de ecrã, em detrimento de outros colegas, mas teve uma pequena história adorável que merece ser contada. Há duas coisas que precisam de saber: ele é bom a hackear computadores e sistemas informáticos e tem um histórico criminal por causa disso. Porquê? Porque hackeou o DMV (o equivalente ao nosso IMTT) para mudar o sexo na carta de condução de feminino para masculino porque o local onde vivia não permitia essa alteração. Go, Parker! Tal como o caso de Parker, Good Trouble tem várias referências às dificuldades burocráticas e discriminações enfrentadas por uma transexual em Los Angeles. Para além de ter sido excluída pela família conservadora, Jazmin (que, por curiosidade, é interpretada pela mesma atriz que interpreta Lulu em Pose) é impedida de alterar o seu nome legalmente por ter um registo criminal e isso traz-lhe vários conflitos, nomeadamente para arranjar e manter um emprego.
Muitas outras séries com personagens trans haveria para abordar, mas não dava para falar de todas, o que é um bom sinal, porque significa que são muitas. Provavelmente não tantas quantas serão precisas para fazer a diferença, mas é um começo que esperamos que continue a trazer estas narrativas e atores trans aos nossos ecrãs. A visibilidade ajuda a criar a tão necessária empatia!
Ana Velosa e Diana Sampaio