Na semana passada lançámos a primeira de duas partes da crónica Quando as Séries Falam de Temas Relevantes e hoje damos-lhe continuação, com novos assuntos e novas séries. É importante falar-se sobre questões delicadas, explorar realidades complicadas, e estas séries fizeram isso mesmo, com temas tão diversificados como a violência doméstica ou o terrorismo. Vejam as nossas escolhas:
Big Little Lies: Provavelmente a maioria de nós conhece mulheres que foram ou são vítimas de violência doméstica. Eu conheço. O mais certo é que isto não corresponda à verdade, mas eu associei sempre as donas de casa que não têm remuneração às vítimas mais frequentes deste tipo de crime; mulheres que não têm forma de se sustentar (e aos filhos) por meios próprios são mais passíveis de se sujeitar a um ambiente de violência, por não terem alternativa. Principalmente se pensarmos num período anterior ao 25 de Abril, havia uma cultura enraizada em Portugal de os homens baterem nas mulheres e que, ainda agora, me parece ser encarada com demasiada ligeireza. Simplesmente as pessoas não se divorciavam, o papel do homem como chefe de família era inquestionável e só restava às mulheres aguentar. É claro que este não é um problema do passado e só do nosso país, mas serve como exemplo. No entanto, Big Little Lies abre-nos os olhos para o tipo de violência doméstica que, para mim, é mais difícil de encarar. Para começar, esta história tem lugar nos dias de hoje e tem como agredida uma mulher com estudos, inteligente e que tem todas as condições materiais para poder sobreviver sozinha. Ela tinha a capacidade de proporcionar uma casa, alimentação, educação e tudo o resto aos filhos, sem Perry. Não estou a julgá-la, estou só a estabelecer o quanto as situações podem ser diferentes de caso para caso. No entanto, o poder que Perry tinha sobre Celeste era enorme. Havia, de forma mais evidente, a dominação física, mas também um abuso emocional muito forte e uma demonstração falsa de arrependimento em certos momentos. Se, para quem está de fora, pode parecer fácil dizer que aquela era uma situação extrema, para Celeste não era bem assim. Talvez estivesse apenas a enganar-se a ela própria, mas as sessões com a terapeuta provam que esta mulher achava que as coisas podiam mudar e o quanto considerava que a situação não era assim tão grave, quase como se fosse irrazoável deixar Perry. O abusador pode ser alguém que se esconde por detrás de uma aparência perfeitamente encantadora e a violência doméstica acontece em todas as classes sociais, a todos os tipos de pessoas. É esta a mensagem mais importante de Big Little Lies.
Grace and Frankie: Numa sociedade cada vez mais idosa e com a esperança média de vida a aumentar, é bom imaginar que quando ultrapassarmos a terceira idade vamos continuar a ter uma vida sexual ativa. As cenas de sexo não são novidade nenhuma no mundo das séries, contudo, quando existem cenas íntimas entre casais seniores, costumam ser retratadas como uma piada ou mesmo como repulsa demonstrada por personagens mais jovens. Grace and Frankie é uma comédia, mas trata deste assunto de forma séria, explorando a sexualidade feminina na terceira idade honestamente, ao mesmo tempo que também toca no tema da homossexualidade. Grace e Frankie são duas amigas septuagenárias que se divorciam dos maridos depois de eles assumirem serem homossexuais e apaixonados um pelo outro. Como recomeçar a vida depois de já se ter vivido 70 anos? No meio de vários problemas associados à terceira idade, Grace e Frankie criam um negócio de vibradores para mulheres acima dos 60. A masturbação feminina é por si só um tema tabu comparativamente à dos homens, quanto mais falar-se em mulheres da terceira idade, como as nossas avós, a masturbarem-se. A verdade é que uma mulher idosa tem tanto direito a masturbar-se e a ter relações sexuais como qualquer um e durante a série podemos perceber o porquê da necessidade de vibradores especiais. É que estes são mais leves, tendo em conta uma possível artrose, possuem vários níveis de vibração para quem tem problemas cardíacos, botões que brilham no escuro para quem vê mal e possuem um formato com um ângulo apropriado para ser mais fácil de manobrar. Masturbações à parte, Grance and Frankie prova que nunca é tarde de mais para recomeçar a vida do zero em busca da felicidade.
Homeland: Esta série já demonstrou de diversas formas a sua relevância na abordagem de questões políticas e mais interessante ainda é que mostra vários ângulos. Não é segredo para ninguém que os Estados Unidos se comportam como se fossem a polícia ou os salvadores do mundo. Brody personificava precisamente isso, o herói americano que foi combater o inimigo. No entanto, todos sabemos que ele próprio se tornou o ‘inimigo’. Contudo, acho que a 4.ª temporada constitui uma verdadeira viragem em sentido contrário e a sexta consolida isso na perfeição. As ações dos Estados Unidos começam a ser questionadas (inclusive por Carrie), bem como a sua legitimidade de invadir outro país. Temos a posição polémica da Presidente dos EUA, a primeira mulher a assumir o cargo, que se opõe a qualquer guerra que envie jovens para a morte. Muitos veem isso como uma ‘fraqueza’, uma tomada de posição porque a guerra lhe matou o filho. Eu não podia concordar mais com ela e não perdi ninguém para nenhuma guerra. Muitos consideram heroico lutar pelo país, mas nem todas as causas são heroicas, longe disso! Na realidade, é sabido que a invasão ao Iraque aconteceu sob falsos pretextos, durante a presidência de George W. Bush, à conta de armas de destruição maciça que afinal não existiam e para mostrar ao mundo que os acontecimentos do 11 de setembro não iam ficar impunes. O que não falta são países governados por regimes ditatoriais e destruídos pelo terrorismo, mas os Estados Unidos escolhem ocupar apenas alguns. Coincidência? Não! A que custo é que os EUA vão ‘libertar’ países como o Iraque, o Irão, o Afeganistão ou o Paquistão? Da vida de milhares de civis?! O ataque do drone durante um casamento, por exemplo, faz pensar. Dizer que aquelas pessoas que ali estavam com o terrorista sabiam o que ele era e que isso serve como justificação para que fossem danos colaterais não me convence. Até porque Haissam Haqqani afinal não morreu, sendo aquelas mortes todas em vão. O terrorismo é algo assustador, mas também são assustadores os fenómenos extremistas contra-imigração e de islamofobia que se verificam por toda a Europa, seduzida por partidos da extrema-direita. Um homem que fala árabe e que usa barbas compridas não é um terrorista. Alguns deles podem sê-lo, mas quantos milhões de árabes há no mundo e quantos deles são terroristas? Uma ínfima parte! A CIA e os seus agentes deixam de ser os ‘bons da fita’. Não é a agência conhecida por diversas formas de tortura? A série destaca-se de várias formas na análise de temas políticos e delicia-me que tenha escolhido uma mulher presidente, como eu desejava que tivéssemos na realidade. Clinton não era perfeita, mas seria uma opção tão melhor do que Donald Trump! É um incendiário, personifica o ódio, precisamente tudo o que a América tem de errado. É ainda de louvar a storyline de Peter Quinn a lidar com Stress Pós-Traumático e o facto de a protagonista sofrer de bipolaridade; são temas que não vemos muitas vezes serem abordados.
Law & Order: SVU: Vivemos na era do movimento Time’s Up e #MeToo, mas há quase vinte anos atrás, quando esta série estreou, o tema dos crimes sexuais não estava no centro das conversas. Como é comum nas séries de investigação policial, cada episódio de Law & Order: SVU é focado num caso diferente, relacionado com um crime de natureza sexual. Ao longo de tantas temporadas, foram muitas as histórias contadas sobre violação sexual, violência de género, discriminação sexual, pedofilia, bullying… Esta série é um retrato fiel do nosso mundo, palco de crimes hediondos em que crianças são abusadas por aqueles em quem deviam poder confiar; em que as mulheres são muitas vezes desacreditadas quando denunciam que foram vítimas de violação… Vale a pena referir, especificamente, a storyline que envolve Olivia Benson, a detetive principal da série, e Lewis, um violador em série. Ele foi a julgamento por uma série de crimes – alguns dos quais Olivia foi vítima às suas mãos – e conseguiu criar dúvida razoável o suficiente para se livrar das acusações de agressão e violação, embora tenha acabado por ser condenado por rapto e agressão a uma agente da polícia. Lewis contou uma história em que fazia dele próprio uma vítima e não o perpetrador e a verdade é que nós, pessoas no geral, gostamos de histórias e nem sempre acreditamos no lado que devíamos. O paradigma está a mudar e bem é preciso! Séries como esta ficam para a História por ajudarem a contar o tipo de histórias a que, na realidade, como sociedade, começamos a dar voz.
Shameless: Para a maioria, a vida real não tem muito de glamourosa e o que não falta nas séries é gente rica com casas fantásticas. Shameless não podia estar num polo mais oposto! Os Gallagher não são apenas uma família pobre, vivem pior do que isso. Com um pai completamente irresponsável e ausente, com uma mãe ainda pior, estes miúdos estão entregues a eles próprios. Contam com Fiona, a irmã mais velha, como verdadeira chefe de família, mas todos fazem a sua parte, mesmo os mais pequenos, para sobreviver no South Side, em Chicago. Desde muito nova que Fiona se sacrificou para tomar conta dos irmãos mais novos, à custa da sua própria felicidade e do seu futuro. Shameless não podia pertencer a um canal aberto, tinha de ser uma série da tv cabo para poder retratar abertamente e sem restrições – quer em termos visuais ou de linguagem – a miséria, as drogas, o álcool, a bebida e o sexo. Há muito mais do que isso nesta série, mas estes elementos, exibidos de forma tão crua e real, são o que a distinguem das demais.
The Fosters: De uma família absolutamente disfuncional passamos para uma das mais ternas da televisão. Esta série é bem mais soft que a maioria das anteriormente abordadas, mas nem por isso menos relevante. Quer se seja ou não um defensor dos direitos da comunidade LGBT (e nós somos!), é inegável que a noção de família, nas últimas décadas, sofreu grandes alterações. Deixou de haver apenas famílias formadas por mãe, pai e filho(s), passou a haver famílias mono-parentais, outras que misturam membros de antigas famílias com novos, famílias constituídas por dois pais ou por duas mães… The Fosters é precisamente o retrato de um núcleo formado por duas mães e um conjunto de filhos, biológicos e adotados. Sempre achei que este tipo de séries podia ajudar a mudar mentalidades e a fazer a diferença e acredito que o faça mesmo. Conhecer-se algo é meio caminho andado para o aceitar, para o compreender, e é nessa medida que séries com personagens LGBT são tão importantes, para mostrar que a nossa orientação sexual em nada nos diferencia. Os Fosters são uma família igual a muitas outras, em que os progenitores nem sempre têm uma vida perfeita enquanto casal, em que os miúdos fazem os disparates típicos da idade… Amor é amor, o resto não são apenas preconceitos? Esta série – e esta família – transmite uma mensagem muito importante de tolerância, de aceitação, e faz-nos navegar pelo complicado sistema de adoção e de acolhimento. Para aqueles que são contra o casamento e a adoção por parte de casais gay, ninguém é bom ou mau pai, bom ou mau marido ou mulher, por causa da orientação sexual. Callie e Jude ganharam a lotaria, por assim dizer, ao serem acolhidos no seio de uma família carinhosa e onde terão sempre a liberdade de serem quem quiserem, sem julgamentos. Nenhum miúdo está melhor numa instituição do que com uma verdadeira família. Merece ainda destaque a atenção dada à exploração do personagem Jude, um menino a lidar com a sua própria sexualidade e com rótulos. A sua relação com Connor, que faz deles o mais jovem casal gay, é um marco na história da televisão.