Há pouco tempo deparei-me com uma discussão nas redes sociais sobre um tema controverso que nunca me tinha ocorrido antes: o estereótipo dos gays na televisão. Esta discussão teve início porque o ator Tuc Watkins, homossexual assumido, confrontou o retrato “típico” de um gay, devido ao que é mostrado na série Modern Family, referente ao casal Cameron Tucker e Mitchell Pritchett. Watkins, que encarnou uma personagem homossexual em Desperate Housewives, afirma que o estereótipo dos indivíduos masculinos homossexuais na série não corresponde às realidades sociais dos tempos que correm. O ator que interpreta Mitchell, Jesse Tyler Ferguson (também homossexual assumido), ripostou a este comentário ao dizer que a presença dos gays na televisão tem crescido, e que o conceito de Modern Family não corresponde necessariamente a todas as características sociais de um indivíduo homossexual, sendo que o registo tem variado na representação da comunidade homossexual do planeta.
Intrigas e opiniões à parte, Modern Family é uma série que tem um propósito muito claro. A relação entre Mitch e Cam age como um mecanismo social em prole do matrimónio entre indivíduos do mesmo sexo, bem como um encorajamento para a aceitação da adopção pelos mesmos. Dado às audiências da série, a “modernização” da sociedade está a ter resultado, porque o humor deles é irresistível. O casal tem particularidades tão divertidas que fazem até o homem mais “macho” do mundo ceder a umas boas gargalhadas. O humor é um veículo importante, ainda que possa levar a opiniões como a de Watkins, uma vez que Cam e Mitchell assumem comportamentos ajustados à definição de homossexualidade masculina que o resto da população idealiza para si mesma.
E, tal como Ferguson, sou apologista de que a sociedade tem vindo a ser educada gradualmente pela televisão. Mesmo antes do tom cómico dado aos gays por Modern Family, já na televisão se fazia história para combater o tabu; Queer as Folk (com edições americana e britânica) e The L Word foram algumas das séries que impulsionaram o movimento. Atores e atrizes heterossexuais decidiram pôr de lado todos os preconceitos para dar vida a uma variedade de personagens homossexuais que lhes valeram prestígio mundial e todas essas personagens agem conforme os seus feitios e personalidades.
A homossexualidade pode ser mostrada de inúmeras maneiras e, por exemplo, em Shameless, Ian Gallagher e Mickey Milkovich elevam a fasquia a um novo patamar. A série insere-se numa América marginalizada, onde uma família disfuncional luta para viver num meio selvagem e cruel. Os acontecimentos em Shameless alternam entre o cómico e o drama intenso, e os argumentistas tentaram aproximar a relação dos dois de forma muito humana. Mickey Milkovich é um rapaz mafioso que não consegue assumir-se devido à posição que ocupa no meio em que vive; a sua persona reside em linguagem agressiva e descargas de testosterona provenientes da rotina de gangster que leva. Há aqui uma humanização do estereótipo que deriva do reconhecimento dos problemas sociais intrinsecamente associados com a orientação, num meio bem diferente do que se vê em Modern Family. Em Shameless o “sair do armário” é uma luta por aceitação e respeito.
Já que o lesbianismo também está em causa, vamos falar da excelente obra de culto Orange is the New Black que tem ganho destaque por todo o mundo. A história de Piper Chapman, a inquilina mais recente da Penitenciária Litchfield nos E.U.A., e na sua integração no meio das reclusas é, tal como Shameless, uma luta pela sobrevivência. A dramédia dá um toque romancista bem mais leve e carinhoso, em comparação à relação de Ian e Mickey. Quase todas as reclusas estão envolvidas umas com as outras e o conceito de transsexualidade numa prisão exclusivamente feminina marca um avanço histórico na televisão. A personagem de Laverne Cox é pioneira numa etapa crucial no pequeno ecrã, já que serviu de inspiração para a mais recentemente premiada série Transparent da Amazon, onde Jeffrey Tambor assume sentir-se confortável na pele de Maura Pfefferman. Não só temos performances brilhantes, como entendemos as necessidades básicas do que é ser-se homossexual em meios hostis e de pouca compreensão social.
A criadora Shonda Rhimes, conhecida pelos êxitos televisivos Grey’s Anatomy e Scandal, recebeu muitas cartas dos seus fãs a criticarem a relação homossexual da sua mais recente aposta How to Get Away with Murder. A figura pública ficou chocada pelo facto de no século XXI haver tanto criticismo. Na série, Annalise Keating é uma implacável professora de advocacia que lidera um grupo dos seus mais brilhantes alunos no seu dia a dia no tribunal; dentro do seu grupo temos Connor Walsh, um playboy americano que todas as meninas achavam ser o seu próximo motivo para encherem as portas do quarto com posters. O choque para elas foi saber que Connor é gay e a intimidade que partilha com o seu parceiro é intensa e sentida. Se todas as outras personagens da série têm o mesmo tempo de antena e enredos amorosos, Connor não é diferente. Os dilemas entre casal são iguais a todos os outros e, quem acompanha a série sabe perfeitamente que é a relação mais normal de todas. Rhimes diz que “enquanto houver pessoas a perguntar o porquê de haver personagens gays na televisão, temos ainda um grande problema por resolver” e promete não cessar na representação do amor entre indivíduos do mesmo sexo. (Estamos contigo Shonda!) Neste caso em particular, de How to Get Away with Murder, o sexo entre pessoas com a mesma orientação sexual tem pouca censura e há uma evolução no conceito e relação homossexual: nenhum dos intervenientes tem atitudes efeminadas e a as suas decisões pessoais do quotidiano mostram que o estereótipo de Modern Family não se aplica a todos os casos, tal como Ferguson havia mencionado.
Agora, a televisão já começa a desenvolver o amor homossexual como algo natural, tentando romper com o preconceito ainda existente. Veja-se o exemplo de Looking que é uma espécie de versão de Sex and the City só com homens. A série acompanha as aventuras de três amigos gays no seu dia a dia, desde a procura de emprego, até aos namoricos, às saídas à noite e às amizades heterossexuais. Looking é definitivamente a série que toda a comunidade gay vê como uma abordagem divertida da realidade homossexual nos tempos que correm.
Para terminar, vejamos um resultado desta abordagem à homossexualidade. Em 2014, na Comic Con de San Diego, o elenco de Orphan Black respondeu às perguntas dos fãs no seu painel. A série de ficção científica é uma genial aproximação futurista dos avanços da ciência no tema da clonagem. A atriz Tatiana Maslany interpreta diversas personagens na série, incluindo uma que é lésbica, Cosima Niehaus; Cosima e Delphine Cormier são amantes, ambas ligadas pela sua carreira profissional e pela paixão pelas ciências transgénicas. Felix, outra personagem de Orphan Black, é também homossexual. Maslany e o ator Jordan Gavaris (que é Felix na série) foram surpreendidos por uma fã quando esta diz “Olá, sou a Taylor (…) e antes de mais queria agradecer-vos [Maslany e Gavaris] porque antes de começar a ver a série tinha vergonha de quem eu era e, assim que comecei a ver com os meus pais, especialmente com a minha mãe, isso melhorou muito a nossa relação (…)”.
Entre algumas lágrimas por parte da fã e de Maslany, chega-se à conclusão de que a televisão age como um projeto educativo. Um mecanismo que foi construído gradualmente e conduziu os espectadores a perder o medo, a vergonha, a baixa auto-estima e a expandirem as suas mentalidades. A televisão é um contacto próximo que pode fazer a diferença em todos nós, como o fez com Taylor e a sua mãe. O tema da homossexualidade perdeu já alguma da sua controvérsia e agora é visto como uma presença (quase) habitual nas séries.
Atores que são assumidamente heterossexuais, como Eric Stonestreet (o Cam de Modern Family), Cameron Monaghan (de Shameless), Raúl Castillo (de Looking), Tatiana Maslany e Taylor Schilling (de Orange is the New Black), fizeram com que a aceitação e receptividade da comunidade gay e lésbica seja, atualmente, vista como uma vivência natural. E, vejam lá, que o galã e mulherengo Barney Stinson, de How I Met Your Mother, é gay na vida real e um dos mais bem pagos atores da televisão e Neil Patrick Harris não teve qualquer problema em interpretar um papel que não vai ao encontro à sua orientação sexual. Porque é awesome e legen…wait for it…dary!
E já agora, se perdeste a crónica da semana passada sobre o tema, recorda AQUI.
Jorge Lestre