Depois de ter visto Trinkets, segui para uma nova maratona – talvez não tenha sido bem uma maratona, porque levei alguns dias – na Netflix com AJ and the Queen. Quando a série foi anunciada fiquei curiosa em espreitar porque a história parecia-me um bocadinho diferente do que anda por aí e deu-me a sensação de que seria mesmo o meu género. De acordo com o que costumo fazer, não vi a série assim que estreou, por causa da minha lista de espera, mas quando foi anunciado o cancelamento achei que era boa altura para ligar a televisão e carregar no play.
[Pode conter spoilers]
1 – A série passa-se na estrada: Não sei explicar bem porquê, mas sempre gostei de histórias passadas na estrada. Acho que tem um pouco a ver com o imaginário americano típico das séries e dos filmes em que andar pela estrada é uma espécie de símbolo de liberdade e de aventuras, onde é inevitável parar num diner para comer panquecas, tarte ou hambúrgueres com batatas fritas. Em AJ and the Queen, a estrada não corresponde propriamente a isso, está mais relacionada com o fugirmos às coisas más que deixamos para trás quando rumamos a outro sítio. As paragens são muitas, o que é bom, porque dá para ver um bocadinho de vários sítios, sem esquecer a passagem por diners e muitas peripécias pelo meio, incluindo umas perseguições. Uma boa parte da ação da série passa-se na autocaravana de Robert e tenho de confessar que também há qualquer coisa de apelativa para mim nestes veículos.
2 – A relação de AJ e Robert: Era sabido que a relação entre os personagens que dão nome à série seria uma parte central da narrativa, mas isso nem sempre é sinónimo de química entre os atores ou se traduz em bons momentos televisivos. Neste caso, as coisas não poderiam ter funcionado melhor. A miúda e Robert, que ganha a vida como drag queen, são uma dupla improvável, mas o tempo encarrega-se de os aproximar. Ela é uma criança que está praticamente sozinha no mundo e ele também está a passar por uma fase muito complicada na vida. Certamente nenhum dos dois imaginava a amizade e o amor que cresceria entre eles, entre espetáculos de drag, fugas e conversas à mesa de refeições. AJ e Robert foram um para o outro aquilo de que cada um deles precisava naquela altura e ficou certamente uma amizade que nunca esquecerão.
3 – A pequena AJ: Ao início nem sempre é fácil gostar de AJ. A sua língua é extremamente afiada, a sua personalidade é um bocadinho bruta, mas não demora muito a que a menina conquiste totalmente. Aos dez anos, ela já passou por coisas que nenhuma criança devia viver, portanto não podemos culpá-la por não ser a criança mais doce de sempre. Aprendeu a desenvicilhar-se sozinha porque nunca teve alguém com quem pudesse realmente contar, mas Robert mostrou-lhe que há pessoas em quem vale a pena confiar e que podemos permitir-nos amar e que nos amem. Apesar de todas as dificuldades que a vida lhe reservou, AJ é engraçada e mostra ser muito sábia para alguém tão novinha, com uma capacidade incrível de dar a volta às situações, mas o melhor de tudo é que tem um coração de ouro onde não há lugar para preconceitos.
4 – A dupla divertida de vilões, Hector e Lady Danger: Lembram-se de Jessie e James de Pokémon? Bem, Lady Danger e Hector fazem-me lembrar deles. O que é que estas duplas têm em comum? O facto de serem vilões bem divertidos e que queremos que falhem nos seus objetivos porque estão a tentar prejudicar os personagens principais, mas que, ao mesmo tempo, adoramos ver no ecrã. Os dois têm traços de personalidade bem engraçados e dão-se um bocado mal, o que acrescenta ainda mais piada à sua relação. Ela só come fast food e faz de conta que é a Lorraine Bracco porque lhe roubou os cartões de crédito e ele fica temperamental porque deixou de conseguir ter uma alimentação saudável enquanto perseguem Robert e até cozinha peitos de frango em ferros de engomar para escapar aos fritos. Não sei como é que conseguiram não se matar um ao outro, mas quase me mataram de riso!
5 – Os flashbacks de AJ com a mãe: Eu nunca gostei muito de personagens perfeitas. Os defeitos tornam-nas mais realistas e tornam o sentimento de empatia mais fácil, mas costumo ter problemas com personagens que abandonam os filhos. Brianna tem um problema de toxicodependência que a faz ser negligente nos cuidados à filha. No entanto, é difícil odiar esta jovem mulher porque ela parece ser boa pessoa, na essência, e há provas de que ama AJ e de que foi boa mãe, em certos momentos. Só que uma criança precisa da mãe – ou do pai – sempre e não só de vez em quando. É aí que Brianna falha à filha, mas sabemos que ela precisa desesperadamente de ajuda para lidar com o seu problema com as drogas. Os flashbacks entre estas duas personagens são absolutamente ternos e ajudam-nos a torcer para que mãe e filha possam encontrar o seu caminho de volta uma para a outra. Além disso, é bom ver um momento da vida de AJ em que ela parecia verdadeiramente feliz.
6 – Mensagem de aceitação e amor próprio: Uma coisa que considero muito importante nas séries é que transmitam alguma espécie de ensinamento. Não num sentido académico, mas humano. Ora, AJ and the Queen é capaz de nos ensinar muita coisa. Com uma narrativa bastante ligada ao mundo dos espetáculos de drag queens, impõe-se abordar que só porque um homem se veste de mulher isso não tem nada a ver com o género com que se identifica. Tal como Robert disse em conversa a AJ, ele não quer ser uma rapariga. No entanto, a mensagem mais importante é a de aceitação e amor próprio. Acho que as duas personagens percorrem um longo caminho nesse sentido. AJ não é alguém que não merece amor só porque se viu temporariamente sozinha no mundo. Por outro lado, Robert não é uma queen tonta só porque foi enganado por alguém que ele pensava que o amava. Nenhuma destas coisas define os personagens, até porque se trata de coisas que lhes aconteceram e não que fizeram a eles mesmos. E, a sério, vamos ultrapassar a questão da diferença! Cada um tem o direito de ser aquilo que é ou que quer ser e as crianças parecem entender isso muito melhor do que muitos adultos. Quanto àqueles idiotas a manifestarem-se contra as drag queens, get a life, people!
7 – A série foi cancelada, mas tem um final: Se estou a desfrutar de uma série, assim que lá chegar logo me preocupo com o facto de ter ou não um final apropriado. Para mim, o final de AJ and the Queen é mais do que satisfatório. Pelo menos, eu terminei de ver sem me sentir frustrada por ter ficado algo muito em aberto. A história está contada, basicamente. Podia ter espaço para mais, mas não fica propriamente a meio. Mais, ao longo da temporada fez-me uma certa confusão que Robert andasse a atravessar estados com uma criança com quem não tem qualquer relação de parentesco e ninguém – quer os seus amigos, quer pessoas com quem se cruzaram, salvo uma ou outra exceção que foi ultrapassada – tenha feito grande coisa a respeito disso. É claro que sabemos que não havia ali nenhuma situação estranha ou inapropriada, mas legalmente tem muito que se lhe diga. Este final não se esquece disso.
Diana Sampaio