Com Unloved a tocar nos meus auriculares, começo a escrever esta review de temporada com uma sensação agridoce. A magnífica banda sonora de Killing Eve transporta-me para os tempos áureos da série em que cada episódio surpreendia e rasgava com os cânones do que estava a ser feito em televisão até então. Uma série que tinha tanto de loucura como de sinceridade e cuja estranheza e crueldade despreocupada nos deixava igualmente desconfortáveis e divertidíssimos. Villanelle (Jodie Comer) e Eve (Sandra Oh) eram personagens revolucionárias, imprevisíveis e apaixonantes – mulheres imperfeitas que, sem as erotizações desnecessárias a que o male gaze nos habituou, conseguiam na mesma ser extremamente atraentes.
Killing Eve foi-se tornando aos poucos um esqueleto desta conceção, mantendo a sua essência graças ao seu elenco, mas perdendo os detalhes geniais na sua escrita, que a elevavam ao nível das grandes produções televisivas da história. Banalizou-se e tornou-se incongruente, muito por causa da mudança de showrunner a cada temporada. A 4.ª e última parte de Killing Eve, liderada por Laura Neal, veio confirmar esta tendência descendente que já se fazia sentir desde a segunda.
A série acabou por reciclar a mesma storyline em que Eve e Carolyn (Fiona Shaw) procuram derrubar os cabecilhas dos Twelve. O que muda é a aliança de Villanelle à causa, que acaba por se provar decisiva. Num esforço comum ao longo da temporada, Eve, Villanelle e Carolyn conseguem descobrir a localização de uma reunião dos líderes dos Twelve, que Villanelle interrompe, finalmente chacinando os homens e mulheres responsáveis pela maioria das atrocidades cometidas ao longo de toda a série. Uma operação algo inútil, considerando a capacidade de regeneração da organização, várias vezes frisada ao longo da série, que nos leva a acreditar que, mesmo com todo este esforço, os Twelve iriam regressar.
No entanto, se formos totalmente honestos, não há ninguém que, ao pensar em Killing Eve, pense nos Twelve – eles nunca foram a força motriz por trás da série. Há sempre exceções, mas, na sua grande maioria, os espectadores de Killing Eve veem a série pelas personagens, especialmente Eve e Villanelle. E a esse respeito, a 4.ª temporada não pecou tanto como a sua precedente, seguindo uma linha mais concisa, com menos falhas de continuidade e decisões descabidas… até ao final.
Ao longo da temporada, vimos Eve focada na sua missão, bastante mais confiante do que outrora. Uma confiança que provém de uma completa ausência de responsabilidades, já que agora a agente pouco tem a perder, depois de ficar sem o marido e todos os seus colegas. O seu único ponto fraco continua a ser Villanelle, que, por muito que Eve tente, nunca deixa de ter poder sobre ela. Por seu lado, Villanelle começa a temporada dedicada ao cristianismo, numa tentativa de mostrar a Eve que está realmente reformada. Quando Eve a ignora, Villanelle rapidamente perde a sua “fé”, cuja forma corpórea lhe surge como uma combinação entre ela própria e Jesus Cristo, numa das tentativas de comédia menos felizes da temporada.
Depois da introdução ao estado atual das personagens, foi interessante ver a forma como, à medida que a trama se desenvolve, ambas navegam os limites do bem e do mal, numa continuação dos temas recorrentes de Killing Eve. Eve vai-se tornando mais confortável com o seu lado negro e, quando sente que a sua missão está prestes a terminar, questiona-se sobre a sua identidade fora do seu trabalho. Quando o psiquiatra residente da série, Martin, lhe diz que deve procurar aqueles que a amam, Eve rapidamente regressa para o lado de Villanelle. Também Villanelle procura terapia junto de Martin, depois das repetidas rejeições de Eve – algo que Martin vê como um sinal de que Villanelle realmente sente empatia e remorso e não pode, por isso, ser uma psicopata, mas apenas alguém bastante perturbada. É basicamente nestas versões que Killing Eve estabiliza, no final, as suas duas protagonistas, num meio termo de moralidade em que ambas encontram paz e satisfação.
Este percurso também nos leva a acreditar que o lugar de Eve e Villanelle é realmente ao lado uma da outra. Se antes sentíamos que uma só trazia ao de cima o pior da outra, agora que ambas encontraram o equilíbrio entre os seus bons e maus impulsos, torna-se evidente que finalmente estão prontas para entrar numa relação (ainda que pouco convencional). O último episódio, de forma cruel, dá-nos um cheirinho do que a vida de Eve e Villanelle poderia ser enquanto casal, confirmando o seu potencial como um dos pares mais icónicos da televisão. Até que, nos últimos minutos, Killing Eve decide destruir todo este progresso e optar pela decisão mais preguiçosa e banal possível: matar Villanelle e forçar Eve a testemunhar a ocorrência.
Quantas séries, com uma aversão crónica a finais felizes, já caíram na armadilha de achar que matar os seus protagonistas é um final digno para as suas storylines? Aposto que conseguem pensar logo numa dezena delas e todas deixam um sabor amargo no espectador, que dedica o seu tempo a acompanhar o crescimento destas personagens, só para que o mesmo seja invalidado nos últimos segundos.
De igual forma, já há anos, marcado principalmente pela morte de Lexa em The 100, vem-se discutindo a tendência de matar personagens LGBTQ+ como uma forma muito particular de homofobia e queerbaiting. A constante negação de finais felizes a este tipo de personagens é já uma tradição no pequeno e grande ecrã, quase como um castigo. Sim, neste caso Villanelle era uma violenta assassina, mas o seu arco de redenção já tinha sido posto em marcha desde a 3.ª temporada, em que descobrimos mais sobre o seu passado. Era importante, então, Killing Eve frisar que Villanelle era uma vítima das circunstâncias da sua vida e recompensar o seu esforço para se tornar uma pessoa melhor com um desfecho positivo, em vez de ir pelo caminho cansado (e francamente aborrecido) da morte.
A 4.ª e última temporada de Killing Eve, que até aparentava ser uma melhoria em relação à anterior, ficou assim arruinada por uma conclusão cobarde.
Resta anotar as storylines de Carolyn e Konstantin (Kim Bodnia) e o grande amor que nunca se concretizou. O episódio em flashback que nos mostrou um pouco mais da sua relação deixa a curiosidade para o possível spin-off centrado no passado de Carolyn que se encontra em desenvolvimento. Carolyn permaneceu completamente imprevisível até ao último momento, quase terminando a série como a verdadeira vilã – um trajeto apropriado dado a natureza fria a que a personagem nos foi habituando. Já Konstantin também recebeu o mesmo final da sua mais célebre aluna – uma morte ingrata, ainda que previsível, para uma das personagens mais fáceis de gostar de Killing Eve.
Finalmente, também um apontamento para as personagens de Pam (Anjana Vasan), Yusuf (Robert Gilbert) e Hélène (Camille Cottin), que, ao contrário das storylines secundárias da 3.ª temporada, me parecerem muito bem conseguidas, e cuja presença acrescentou coração e intriga à narrativa.
Killing Eve termina, assim, sem concretizar o potencial que a sua 1.ª temporada anunciava em 2018, perdendo-se por entre a sua própria teia na tentativa de dar passos mais longos que as suas pernas.
Por cá, a série completa está disponível na HBO Max.
Melhor episódio:
Oh Goodie, I’m The Winner (Episódio 6) – Este episódio é marcado por um paralelismo entre o início da abertura de Eve aos seus sentimentos por Villanelle e o empoderamento desta, que finalmente deixa de correr atrás de Eve e decide tomar as rédeas do seu próprio destino. Conta também com um dos assassinatos mais cinemáticos da temporada – o de Hélène – à boa maneira de Killing Eve.
Personagem de destaque:
Villanelle (Jodie Comer) e Eve (Sandra Oh) – Sendo esta a última temporada de Killing Eve, esta funciona como a seleção das personagens de destaque da série em geral. Seria, portanto, injusto não dividir os louros pelas duas grandes protagonistas que, com o seu carisma e magnetismo, conseguiram muitas vezes mascarar alguns erros da série.