Temporada: 1
Número de episódios: 8
[Contém spoilers]
Cada vez mais, e talvez derivado da fama de grandes revelações televisivas internacionais como La Casa de Papel ou Dark, a Netflix tem-se esforçado em trazer produções cuja língua mãe não é o inglês, a que tanto estamos habituados.
Depois de me apaixonar pela produção dinamarquesa The Rain, também eu decidi ser como a Netflix e explorar cada vez mais o mundo televisivo não-inglês. Daí hoje vos trazer Ninguém Tá Olhando, uma aposta brasileira que conseguiu trazer muito mais do que aquilo de que originalmente estava à espera.
Decido começar pelo fim: Ninguém Tá Olhando foi uma surpresa pela positiva. Desde os risos que facilmente arranca ao espectador, à sátira constante, à máquina social feita de uma forma muito inteligente. O argumento é frágil e simples e não tem nada de complexo. Quem me conhece sabe que não dou mão à palmatória por séries demasiado simplistas. Acontece que esta, com todos os detalhes secundários, ganhou um lugar no meu pequeno pódio e isso só por si traz mais valor! Ora, vamos ver se vos consigo ilustrar.
A premissa de Ninguém Tá Olhando é muito básica: Ulisses (Victor Lamoglia) é um anjo (ou, de acordo com a série, Angelus) que nasce para proteger os humanos das suas peripécias diárias, tal como todos os outros Angelus antes dele. A grande diferença é que Ulisses (ou Uli, como prefere ser chamado) se predispõe a questionar o sistema de uma forma que nenhum outro o fez antes dele e, com isso, traz revelações deveras… engraçadas!
Vejam a pintura desta forma: Ulisses nasce no dia 6 de novembro as 6h15. Quando nasce, já adulto, a primeira coisa que vê é um vídeo introdutório que lhe explica qual é a sua missão de vida: todos os dias recebe uma Ordem do Dia que vem lá do ‘chefão’ e essa ordem do dia é o nome do humano que ele está destinado a proteger durante 24 horas; para além disso, como bom Angelus que deve ser, Ulisses tem quatro regras básicas que não pode quebrar: cumprir sempre a Ordem do Dia, não aparecer aos humanos, não proteger humanos fora da Ordem do Dia e nunca, mas nunca, entrar na sala do Chefe. Querem saber que mais? Desde o dia 1 que Uli quebra as regras básicas e até ao fim da temporada não para de o fazer!
Talvez a série me tenha conquistado logo no primeiro episódio e, forçada a escolher o melhor, esta é a razão pela qual o escolhi: a regra mais importante que os Angelus têm que seguir é “Jamais entrar na sala do Chefe”. É das primeiras coisas que Uli faz. Só que quando ele chega à sala do chefe, Uli depara-se com uma máquina muito ao estilo revolução industrial onde um hamster corre numa roda que faz girar um sistema enorme de gôndolas e roldanas que fazem a distribuição das ordens do dia para todos os departamentos do mundo.
A delicadeza do visual cru e da realidade com que Uli é confrontado de que não é o Chefão que manda as ordens, mas sim um hamster (equiparado aqui a um ser insignificante), coloca-nos à frente uma metáfora para a realidade social de que falei acima: os Angelus, tal como nós humanos, são zombies filhos da máquina social. Atrevo-me a equiparar esta imagem do final do primeiro episódio à Ode Triunfal de Álvaro de Campos e pergunto-me se não terá sido essa a inspiração dos criadores Carolina Markowicz, Teodoro Poppovic e Daniel Rezende.
Ao longo da série vamos conhecendo personagens fulcrais: Greta (Julia Rabello) e Chun (Danilo de Moura) tornam-se os companheiros de Uli na sua aventura de quebra-regras e eles próprios trazem personalidades completamente diferentes à mesa e cada um deles retrata um estereótipo de uma reação à descoberta de ‘não há chefão’. Greta fica desolada ao ponto de começar a despreocupar-se da sua missão de Angelus e Chun é o total oposto: quer acreditar que há algo mais.
Já pensaram como é engraçado que sempre que há uma revelação estonteante na nossa vida, conseguimos enquadrar-nos em três reações diferentes? Os visionários (como Uli) que acreditam que há algo mais para ser descoberto; os descrentes (como a Greta) que lidam com a revelação de que aquilo em que sempre acreditaram não existe através do desleixo e da despreocupação; os crentes (como Chun) que não aceitam a revelação e continuam a fazer a máquina funcionar porque acreditam que essa é a sua missão, independentemente do resto.
A introdução de personagens como Fred, o supervisor do departamento do Sistema Angelus, trazem à série mais um complemento do nosso dia a dia: estão a ver aquele chefe que trabalhou ali durante a sua vida inteira sempre da mesma maneira e é resistente à mudança e ao desenvolvimento? É Fred! Valdir, Miriam, Cilene ou Richard, ainda que com pequenos papéis, são fulcrais para o desenvolvimento dos nossos três mosqueteiros também: Uli, Chun e Greta rompem as regras da sociedade que Fred tanto quer incutir por se achar o dono e senhor da verdade absoluta. Uli e Chun apaixonam-se. Uli e Greta têm sexo. Greta adora drogas.
No seguimento da convivência com estas personagens secundárias é preciso elevar um ponto: é que Ninguém Tá Olhando tem outra característica muito importante. É que estes Angelus deparam-se pela primeira vez com a noção de que têm liberdade para fazerem o que querem sem serem castigados (porque não há chefe, né?) mas durante o decorrer da temporada apercebem-se de que os atos deles têm consequências, mesmo que ninguém esteja lá para os controlar ou para os punir.
É o próprio rumo que eles tomam que decisão após decisão se vai tornando em algo consequente dos seus atos, que no início não estava nos planos. E esse é um pouco o conceito de liberdade, se pensarmos bem.
Não estava à espera de ter vontade de ver a série toda de uma vez, mas tive. Não estava à espera dos pormenores e dos detalhes emocionais numa série que é tão simples e com o intuito de ser uma comédia, mas eles estavam lá. Não estava à espera de que a banda sonora simplista fosse de facto o que melhor se encaixava, nem tão pouco estava à espera do visual moderno, mas despido de grandes efeitos especiais (não totalmente, claro, mas é à naturalidade que me refiro) e que funcionam perfeitamente.
Não estava à espera, confesso, de perceber que Ninguém Tá Olhando é de facto uma das melhores apostas da Netflix nos últimos tempos.
Antes que me esqueça, e para vos aguçar o paladar para uma segunda temporada que tenho a certeza que não tardará em chegar tenho que vos falar do último episódio. No final Uli, Greta e Fred estão na sala do chefe, a tentar provar a Fred aquilo que eles saborearam durante a temporada toda: não há chefe. E então claro, passo ante passo começa um ser a descer pelas escadas e encerra esta temporada com algo semelhante a ‘Quem é que foi o primeiro a invadir a minha sala?‘.
…To Be Continued.
Melhor Episódio:
Episódio 1 – Não escolho o primeiro episódio por não ter havido mais nenhum bom. Escolho-o porque foi o episódio que me convenceu. Refiro-me de novo à primeira imagem da máquina de gerar Ordens do Dia. Foi nos últimos tempos a melhor caracterização visual da mecanização industrial e social dos nossos dias e foi sem dúvida o que me fez carregar em ‘ver próximo episódio’.
Personagem de destaque:
Greta (Julia Rabello) – Eu sei que disse que Greta é desleixada, mas a Júlia faz um trabalho muito bom de desenvolvimento de character da Greta. Ela usa e abusa da sua liberdade, usa e abusa de poder praticar o ócio e de ir aos extremos, mas tem um coração de ouro. Talvez de todos a Greta tenha sido a personagem que mais evoluiu e por isso escolho-a a ela.
Joana Henriques Pereira