Temporada: 1
Número de episódios: 10
[Contém spoilers]
Acabar de ver a temporada de Dickinson é acabar com um sentimento de se ter sido inspirado. Com aquela sensação que se tem quando se “consome” ou “entranha” arte. Arte que fala connosco, que parece feita para nós, como um presente do universo para a nossa alma, que nos faz sonhar. É este o sentimento que procuramos em toda a arte que consumimos, e é este sentimento que quase nunca encontramos até darmos de caras com os “Dickinsons” da vida, que finalmente nos preenchem. Não há sentimento igual.
Há uma lista de características que fazem esta série especial. Podemos começar por enumerar as características formais, como a composição da maioria dos enquadramentos – o seu detalhe, a sua subtileza -, a cadência das sequências e dos episódios – o ritmo eletrificante que abranda sempre no momento certo -, ou o esquema de cores – a mistura entre o vivo e o morto, o contraste entre os tons fortes e os tons apagados. No entanto, o que distingue Dickinson de 99% da televisão a ser feita neste momento são as características que não podem ser matematizadas. É a personalidade que a preenche, a inovação que vem de mãos dadas com a genuinidade das histórias que são contadas, é a originalidade do tom da série que lhe é dada pelo guião genial, que não deveria funcionar, mas que é simplesmente perfeito, e pela sua banda sonora, que define, sem dúvida, todo o ambiente.
Dickinson não é a série com o plot mais complexo, nem com as sequências mais mirabolantes, mas é das séries com mais coração feita nos últimos tempos. É uma pausa nas tentativas incessantes da indústria de fazer mais e melhor, mais chocante, mais loud, mais caro… Em vez disso, para nós, como fãs de televisão, foi uma lufada de ar fresco. Emily Dickinson vivia, claramente, à frente do seu tempo, e a criadora desta séria, Alena Smith, compreendeu isso perfeitamente. A maneira como a poesia, clássica mas arrojada, de Dickinson é misturada com linguagem moderna funciona, exatamente porque a escrita da poetisa americana sempre teve, em si, um ar de modernidade, que borrava as linhas do que era típico na altura. Percebe-se o porquê de Emily se ter tornado num dos maiores nomes da poesia americana e mundial, já que a sua poesia não é apenas moderna, mas intemporal. Não conhecíamos muito sobre a Emily Dickinson antes de vermos a série, mas se ela era na verdade tão desejosa de mudança e de liberdade como é retratada, esta mescla de estilos, tons e períodos históricos parece ser mais que indicada para contar a sua história.
Emily é, obviamente, a estrela da série, mas a sua relação com outras personagens revela-se tão ou mais importante que a sua narrativa pessoal. Todas as personagens à volta de Emily a influenciam de alguma forma, mas há três relações que se destacam acima de todas as outras, e que, juntamente com o livre-arbítrio da protagonista, definem quem Emily é e em quem ela se vai tornando, ao longo da temporada. Estas são o seu pai, a sua amada e melhor amiga Sue e a Morte.
Comecemos pelo seu pai. Edward Dickinson é um homem célebre na cidade devido à sua carreira política, desde cedo apresentada na série, que o obriga a ter uma certa persona pública. Esta acaba por pesar na relação com a sua filha, Emily. Emily, entre os seus irmãos, Austin e Lavinia, é quem desafia mais o seu pai mas, ao mesmo tempo, quem com ele tem a relação mais próxima e afetuosa. Esse “quente e frio” é dos temas mais desconcertantes e interessantes da temporada. As imposições, típicas da altura, que Edward aplica na sua filha – tais como não poder ter uma educação superior, não poder ir ao circo, não poder nadar, não poder ler, mas principalmente, não poder publicar os seus textos – parecem-nos demasiado autoritárias exatamente porque a série tem sucesso em fazer-nos esquecer que se passa no século XIX. É possível, então, interpretar o pai como a personificação da opressão patriarcal da sociedade da altura. No entanto, por muito que a limite, o pai de Emily tem um amor claro por ela, e muitas vezes cede às suas paixões. É quase contraditório, ainda que muito próprio de um pai que adora a sua filha, e que percebe que ela precisa de liberdade, mas que ao mesmo tempo tem em si impostas expectativas daquilo que um pai, e um homem da classe alta, devem ser. Tudo isto resulta numa das relações mais intensas da séria, que sem dúvida funciona como a base da personagem de Emily.
Se a relação com o seu pai é a base, então a relação com Sue é a alma da protagonista. Um amor puro e incondicional, asfixiado, mais uma vez, pelas normas societais da época mas que, apesar disso, nunca se deixa extinguir. Sue é, logo no primeiro episódio, prometida como noiva do irmão de Emily, e os primeiros capítulos da temporada são marcados por uma luta de forças entre Emily e Austin pela atenção de Sue. Uma série de complicações narrativas, aliadas ao facto de serem duas mulheres no século XIX, leva a que não possam estar juntas romanticamente. Como audiência da série, conseguimos compreender isto, mas é impossível não ficar pelo menos tristes, já que é evidente que o amor entre Emily e Sue supera qualquer outro. Este balanço entre o facto delas estarem apaixonadas e a impossibilidade de elas terem uma relação era um ponto crucial que, a nosso ver, podia diferenciar a série no que toca à forma como as relações homossexuais são escritas, ou podia seguir o mesmo caminho que já vimos ser percorrido vezes sem conta, subestimando a ligação entre Emily e Sue e fazendo dela uma coisa do passado. Tal, felizmente, não aconteceu. Numa série de altos e baixos, a série nunca deixou de mostrar claramente que Emily e Sue são o amor da vida uma da outra. A maioria das grandes narrativas tem uma história de amor épica e Dickinson faz um brilhante trabalho na escrita da sua.
Finalmente, a relação mais intelectual e espiritual estabelecida por Emily ao longo da temporada é com a Morte, personagem deliciosamente interpretada por Wiz Khalifa. Desde o primeiro episódio que é afirmado que a Morte é a única “pessoa” que realmente compreende Emily e a relação entre os dois é escrita com subtons românticos e inclusive sexuais. Tudo isto é, claro, uma metáfora para a fascinação de Emily com a Morte, assunto que é, depois, explorado ao longo da temporada. A frase “I wanna die” é dita pela protagonista vezes sem conta, algo que consegue ser das coisas mais millennial da série, mas que também mantém vivo no espectador o tema da Morte, ainda que, durante muito tempo a sua personificação deixe de aparecer. O seu regresso marca uma viragem crucial no percurso de Emily. Desta forma, esta é uma relação que vai evoluindo, num storytelling brilhante pela parte dos produtores e guionistas, sendo responsável pelo verdadeiro desfecho da temporada, que põe em evidência tanto a enorme evolução da personagem de Emily na forma como aborda a vida e a morte, como o facto de esta ser o principal tema de toda a série.
As relações acima descritas são apenas três terços do que define a personagem principal desta série. O último terço é a própria Emily, os seus pensamentos, a sua atitude perante a vida, o seu talento único e a sua poesia.
Além das três personagens principais para Emily, a série é capaz de dar importância a todas as outras. Temos os irmãos de Emily, começando por Austin, que tem sempre uma relação de altos e baixos com Emily, mostrando ser um homem progressista para a sua altura, mas que inevitavelmente é influenciado pelo seu papel de homem numa sociedade do século XIX. Já a sua irmã, Lavinia, inicialmente e tal como a sua mãe, acredita no papel da mulher como dona de casa e esposa, mas apesar disto, tem uma personalidade atrevida e sedutora e recusa ser intimidada por comentários desaprovadores da altura. Ou seja, as personagens são ao mesmo tempo rebeldes e desafiadoras das normas, mas acabam sempre por ser influenciadas pelo ambiente em que se encontram, o que parece ser um balanço ideal para a série.
Dickinson é uma história apaixonante, divertida, emocional e, acima de tudo, genuína, sobre uma mulher única e a sua relação com a vida. Relação essa que os produtores da série conseguiram trazer para os dias de hoje e tornar completamente atual e, por isso, fazer dela uma história com a qual nos conseguimos identificar. A série não retrata só uma história ficcional baseada em Emily Dickinson, mas retrata uma história universal de experiências de vida, da exploração dos nossos interesses e das nossas relações com os outros, independentemente dos obstáculos que possam surgir.
Melhor Episódio:
Episódio 7 – Houve várias cenas durante a temporada que nos deixaram de boca aberta, mas no geral, o episódio 7 é um bom resumo das razões pelas quais Dickinson é uma série fantástica. Neste episódio, Emily é confrontada com todas as opressões da sua vida, por ser mulher. Primeiro, o pai não a deixa ir ao novo circo que está na cidade, porque é um espetáculo muito violento para uma lady. Segundo, e mais grave, o pai descobre que Emily publicou o seu poema no jornal, usando o nome de Austin. A escala destas opressões vai aumentando até chegar a um clímax, no final do episódio, onde Emily se imagina como uma freak do circo, pelo simples facto de querer ser uma mulher poeta, no século XIX. É uma das cenas mais magníficas visualmente, mas também das mais dolorosas, que eu já vi em televisão. A história, a representação, a câmara, luz, guarda-roupa, tudo se une para demonstrar claramente a tristeza e a revolta que a Emily sente. E não podia ter sido melhor.
Personagem de destaque:
Emily Dickinson (Hailee Steinfeld) – Parece uma resposta óbvia, mas realmente não é possível escolher mais ninguém, sem ser a Emily. É a personagem que conhecemos mais intimamente, a personagem mais complexa e ao mesmo tempo mais fascinante. Uma mulher progressista, que não se conforma com as regras que a sociedade lhe dita, mas que se vê obrigada a aceitá-las, não por falta de coragem ou receio, mas porque se sente encurralada neste sistema de opressão. É alguém que tem os dois lados: gosta e precisa do seu tempo sozinha, com os seus poemas, mas é também uma pessoa muito social, com as suas festas e as suas relações. A Emily é uma personagem muito humana e é por isso que é tão fácil compreendê-la.
Ana Oliveira e Francisca Tinoco