Escrever uma review de um piloto com duas partes é sempre um pouco ingrato, porque não acontece raras vezes o piloto ter diferenças assinaláveis em relação ao resto da 1.ª temporada – por vezes até mudanças de atores, mas maioritariamente é uma diferença que tem que ver com o estilo e a estética da série em si. Em The Detour, felizmente, a diferença entre os episódios não é assim tão grande.
Mas já lá vamos. Comece-se pela premissa da série, que é a ideia que põe tudo o resto de pé: The Detour (traduzindo à letra, seria “O Desvio”) anda à volta de uma família de quatro que vai de férias, mas não para o sítio ou da forma que achavam que iriam. A narrativa principal do episódio, típica de piloto, lida com o acontecimento que vai “suportar” a temporada inteira e que, neste caso, é o tal desvio que as férias desta família sofrem.
A história é a seguinte: a família (o pai Nate, a mãe Robin, e os filhos gémeos, Delilah e Jared) decidem ir de férias para a Florida, mas o pai, que se descobre mais para o fim do episódio ter sido despedido no dia anterior, preocupa-se com os custos que a atual instabilidade da família não consegue suportar. Dessa forma, decide, sozinho, não contar à esposa que está desempregado, mas ao mesmo tempo alterar as férias todas para uns planos “mais em conta”. Por isso, enquanto todos contavam estar a caminho do aeroporto, desvia para o estado da Pensilvânia, enquanto todos dormiam.
A comédia começa aqui. O episódio piloto (e o seguinte, mas numa narrativa diferente) bebe da inspiração de uma tradição antiquíssima no género teatral, que é o da farsa ou comédia de enganos, em que a fonte da comédia e do riso se centra nas tentativas de uma personagem de ludibriar, seja de que motivo for (muitas vezes, o motivo é o mesmo do de The Detour, que é o embaraço causado pela realidade que se quer esconder), as outras personagens e nas situações em que o enganador cai quando lida com as consequências das suas mentiras.
Em The Detour, isso passa pelo ludíbrio a que já nos referimos quando Nate tenta levar a sua família em férias para a Pensilvânia quando estavam todos à espera de ir apanhar sol para as praias da Flórida. Não é preciso saber geografia norte-americana para saber que ia dar asneira – aliás, seria completamente inane alguém na vida real estar à espera de enganar as pessoas durante aquele período de tempo sem esperar repercussões tão mais graves quanto maior fosse o tempo passado entre o princípio do engano e a sua admissão. Contudo, estamos no campo da farsa, e tudo é possível, e sendo o objetivo a comédia, acho crucial que não se analise a série tendo em conta mesquinhices deste género, de julgar as personagens segundo as regras da vida real. O objetivo é o entretenimento.
E The Detour cumpre – e bem! As personagens têm tudo para que resulte comédia das suas interações e a equipa de atores tem tudo para fazer com que as personagens resultem. Há um momento particularmente cómico em que a rapariga dos gémeos (Delilah) tem o período pela primeira vez quando a família encosta perto daquilo que parece ser um simples café onde se vendem gelados, mas que se descobre ser uma casa de striptease.
Ambos têm aqui um acordar típico da adolescência – para a rapariga mais literal, com o início da adolescência que a menstruação marca – e para o rapaz mais simbólico, com a convivência não-intencional com bastantes corpos femininos desnudos (que não aparecem no ecrã, para que a série seja family-friendly). Para além das situações engraçadas que tudo isto causa (a rapariga é “salva” pela hoste de strippers do local, que lhe dão inclusive um care package para lidar com a sua nova situação), não deixa de ser curioso que isto se passe logo no primeiro episódio. Dá a sensação que os criadores da série querem explorar esta fase da vida dos jovens, de descoberta e de despertar, como motor de comédia.
Para além das constantes referências ao “explicar como as coisas funcionam” que surgem durante a estreia dupla, o segundo episódio parece consolidar esta teoria, com duas cenas: uma, em que o pai tenta finalmente explicar aos gémeos como funciona a gravidez (depois de muitas demonstrações de ignorância durante o primeiro episódio), sendo constantemente interrompido pelo mecânico ao lado que lhes tenta explicar o mesmo através de metáforas relacionadas com o mundo automóvel; a outra, em que os gémeos parecem estar a ver um vídeo pornográfico no computador (ouvem-se apenas sons “suspeitos”), mas que mostram ser um vídeo de gameplay (mas que mais tarde revelam ser realmente um vídeo pornográfico).
Temos, portanto, dois elementos que parece que vão ser recorrentes durante toda a temporada: o crescer para a puberdade dos gémeos e as repercussões do engano que Nate tenta impingir ao resto da família, certamente durante o maior tempo possível. Para além de todas as peripécias que a viagem poderá proporcionar, numa grande liberdade para os escritores da série, estes dois motifs serão também eles utilizados como veículo de comédia.
Resta falar um pouco sobre os aspetos técnicos dos dois episódios, nomeadamente na estrutura que ambos usaram, em que usam uma breve analepse ou prolepse para explicar a situação em que a família se encontra – dessa forma, pode-se alegar que a história principal nos é apresentada um pouco in media res, visto que o que assistimos é o resultado daquilo que teoricamente poderia, numa série dramática, ser o centro da narrativa. Estes pequenos flashes foram usados, em ambos os episódios, no final dos mesmos: no primeiro, é assim que nos é apresentado que o pai foi despedido, o que por sua vez motivou a alteração súbita da viagem, e no segundo, no que parece ser um flashforward, é-nos revelado que está a ser investigado pelo FBI devido a algo que ainda desconhecemos.
Esta estrutura de ocultação de certos elementos centrais da narrativa permite duas coisas, a meu ver favoráveis, à série: a primeira prende-se com uma forte componente narrativa que a série passa a ter. Ao decidir mostrar explicações de coisas atuais ou revelações de coisas que se vão passar separadamente da narrativa central do episódio, mas que nela podem ter um determinado efeito (seja em retrospetiva, ao percebermos melhor o que levou a determinada situação, ou com um efeito de foreshadowing, que nos prepara para algo que vai acontecer, mostrando-nos o resultado disso mais para a frente), a série assume uma força narrativa que prende o espectador e que enriquece a história a que estamos a assistir.
A segunda benesse dessa divisão tem que ver com o foco do episódio. Apesar de haver uma promiscuidade maior dos episódios com a narrativa geral (ou arco) da temporada, a estrutura intra-episódio também beneficia porque ao mesmo tempo separa a narrativa do episódio em si do que é essencial que o espectador saiba para ir compreendendo a história que a temporada vai contar.
No geral, The Detour, com os seus diálogos rápidos e situações divertidíssimas, bem como uma equipa técnica claramente capaz, tem tudo para funcionar. A mim, agarrou-me, e vou passar a ser um seguidor assíduo.
José Pedro Rodrigues