Comic Con Portugal: à conversa com Samantha Shannon
| 28 Mar, 2024

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O Séries da TV teve oportunidade de falar com a escritora Samantha Shannon, que esteve presente nesta edição da Comic Con Portugal. É autora da saga de livros The Bone Season, assim como a sua mais recente série de fantasia épica, The Priory of the Orange Tree (O Priorado da Laranjeira, na edição portuguesa). Samantha conta-nos acerca das suas inspirações para escrever personagens femininas em fantasia, o mundo histórico que constrói para escrever os seus livros e ainda opiniões sobre inteligência artificial na literatura. Descobre mais lendo a entrevista transcrita na integra abaixo.

No live stage, mencionas que, depois de terminares de escrever as séries de The Bone Season e The Priory of the Orange Tree, tens interesse em escrever acerca da deusa grega Iris. Eu sei que ela transmite as mensagens dos deuses, mas não há muito escrito acerca dela. É uma das razões que te levou a querer escrever sobre ela?

Sim, basicamente. Neste momento temos tantos livros acerca de mitos reimaginados e eles sempre me fascinaram, e há muitos que são focados em contar as histórias das mulheres e em trazê-los para a luz do dia. A Iris foi interessante pois não aparenta ter muita mitologia acerca dela própria. Ela aparece em outros mitos e sempre que está a fazer qualquer coisa, é interessante. Há uma ótima cena na Iliada, onde ela salva Afrodita do campo de batalha, por exemplo, que eu adoro, mas não sabemos muito sobre as suas motivações ou a sua vida pessoal de todo. E não aparenta que ela tenha sido adorada no mundo antigo, não sobreviveram muitas imagens dela, por exemplo.

Parece que ela não conseguiu contar a história dela e estás a reimaginar o que teria sido?

Exato e ela não parece ter tido templos próprios nem nada do género. Há algumas indicações de que ela podia ter sido adorada a algum nível, mas numa escala muito menor comparando como alguém como Afrodite, por exemplo. Foi isso que me atraiu nela porque senti que mais ninguém contaria a sua história.

Relacionado com esse tema, mencionaste que a representação é um tópico muito importante para ti. Por exemplo, em Priory [of the Orange Tree] chamas a um reino “Queendom” em vez de “Kingdom”, subvertendo um pouco a relação de poder e colocando as mulheres no topo. Tens também um casal sáfico, isso é algo que sempre quiseste incluir no teu trabalho ou foi algo que os leitores gostaram e achaste que podias escrever para eles?

Tem sido definitivamente um tema importante para mim em termos de representação das mulheres. Na minha série The Bone Season, que é também o meu livro de estreia, a história é contada na perspetiva de uma mulher de 19 anos e eu era uma mulher de 19 anos quando comecei a escrever. E lembro-me que no inicio da minha carreira era algo que era bastante comentado, as pessoas perguntavam-me “porque é que escreves estas personagens femininas fortes?” e era a questão do momento na altura. E suponho que foi importante para mim, apesar de não ter pensado tanto nisso até começar a escrever Priory, possivelmente porque comecei a escrever estas duas personagens (mulheres) e senti que elas estavam a aproximar-se uma da outra, e pareceu-me então natural escrever um romance entre as duas. Lembro-me que na altura havia esta ideia que ficção lésbica não vendia particularmente bem, não tenho a certeza se alguma vez foi comprovado com estatísticas, mas era um rumor na indústria que provavelmente não seria o mais rentável a nível comercial. Eu sabia que estaria potencialmente a correr um risco mas era muito importante para mim e eu não queria puxar no sentido oposto do que as personagens me estavam a querer dizer que eram. Fico muito feliz por ter decidido arriscar porque aparentemente existe uma audiência gigante para ficção sáfica, e tem havido tantos livros sáficos ao longo dos anos a provar que as pessoas querem realmente ler livros com diversidade.

Tens algumas inspirações para a tua escrita, por exemplo mulheres escritoras ou algumas personagens que te marcaram e que pensaste, “quando eu escrever a minha história quero manter aquele legado”?

A maioria dos escritores que eu leio são mulheres. Eu leio escritores masculinos, mas na maioria das vezes leio obras de escritoras porque sinto que oferecem as personagens femininas mais complexas e interessantes. Algumas das escritoras que me inspiraram foram, por exemplo, a Margaret Atwood, ela era uma das autoras primordiais do estilo distópico e foi alguém que me tornou consciente do feminismo na escrita. Tive oportunidade de a conhecer quando lancei o meu primeiro livro, e foi a experiência mais intimidante mas incrível de sempre. É uma mulher tão inteligente, eu mal sabia o que lhe dizer mas foi muito simpática. Também adoro o trabalho da N.K. Jemisin, o livro The Fifth Season é um dos livros de fantasia mais soberbos que já li, a construção do mundo que ela faz é maravilhoso. Outra escritora é a Laini Taylor, acho que ela escreve de forma tão lírica sem tentar, a prosa dela é muito bonita mas nunca é demasiado complicada. É bastante artística, e também quero que os meus livros sejam lidos da mesma forma.

Em fantasia há três grandes pilares: a construção do mundo, o enredo e o desenvolvimento das personagens. Destes três, quais achas que são os pontos mais fortes na tua escrita ou qual deles gostas mais de explorar?

Acho que as pessoas que leem o meu trabalho provavelmente diriam a construção do mundo, é pelo que sou mais conhecida e eu adoro construir mundos complexos de fantasia, adoro puxar os limites e quero explorar todos os cantos deste mundo. Não só o que o mundo é agora, mas o que já foi e o que poderá vir a ser. Gosto de saber que não é só a personagem que está lá presente, mas as pessoas que vieram antes também, e quero dar a impressão que o mundo existe mesmo fora dessa personagem. Pessoalmente, o que eu gosto mais é o desenvolvimento das personagens. Construir mundos é divertido mas é o que me dá mais trabalho, principalmente porque os que eu me inspiro em sítios reais, por isso tenho de pensar como vou integrar a história neste mundo e o que iria funcionar ou não dentro deste mundo de fantasia. Mas desenvolvimento de personagens é tão divertido para mim, honestamente se eu pudesse escrever um livro só com duas personagens a falar uma para a outra, adoraria isso! O enredo é o que eu menos gosto porque é o que mais me desafia, é a única vez que eu realmente tenho que escrever notas. Tenho de escrever notas sobre o que se passa para conseguir visualizar como é que as pontas se conectam, e normalmente os meus enredos são muito complexos e há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo. Em Priory há quatro personagens principais, cada um deles com o seu enredo individual que eu tenho de conectar a um enredo maior, por isso tudo isso tem os seus desafios, mas as personagens é perfeito para mim. Adoro desenvolver personagens a partir de conversas, situações em que se encontram, é o meu grande prazer na escrita.

Por exemplo, em The Priory of the Orange Tree, era suposto ser um livro só, certo? E depois escreveste uma prequela que saiu recentemente. Isso surgiu porque começaste a pensar na história e querias explorar mais ou qual foi a razão para a escrever e sentir que ainda tinhas mais por dizer?

Era suposto ser um livro só porque eu tenho outra série ainda a sair, a The Bone Season, por isso não me queria comprometer com outra série longa, então a intenção era escrever apenas um livro, uma só história. No entanto, eu tive de criar uma história de 1000 anos, porque o enredo principal de Priory é que o dragão chamado The Nameless One voltou e tinha sido banido há 1000 anos, por isso tive de criar eventos que aconteciam nesse período de tempo. E um desses eventos foi uma guerra entre dragões e humanos chamada The Grief of Ages ou The Great Sorrow, e achei que esse período seria muito interessante para explorar. Eu chamo-lhe “a pior altura para estar vivo” em Priory porque estava tudo a correr mal. Senti-me atraída pelo desafio porque The Grief of Ages acabou com a chegada de um cometa, enquanto que no mundo de Priory as personagens colecionam itens mágicos e combinam-nos para derrotar um dragão, portanto é um enredo de fantasia bastante comum. Enquanto que em A Day of Fallen Night, a prequela, eu sabia que as personagens não sobreviveriam a chegada do cometa, então era mais sobre as personagens viverem até aquele momento. Foi uma história muito interessante de escrever de uma perspetiva de enredo, tem uma história menos comum mas gostei muito.

Numa direção um pouco diferente, tem havido um aumento significativo de inteligência artificial, histórias a serem escritas por IA e a participar em competições literárias. Gostava de saber a tua opinião geral sobre IA e quais poderão ser os desafios para o futuro?

Acho que não sei o suficiente sobre inteligência artificial para fazer um comentário forte. Em termos de histórias escritas por IA, eu não leria essas histórias, não porque não possam ser de qualidade, mas porque essa não é a razão porque eu leio ficção. Eu leio porque quero saber algo sobre o autor, algo que veio da imaginação e da experiência humana, então para mim não haveria nenhuma felicidade em ler algo escrito por IA. Obviamente acho que IA tem imensos usos, por exemplo num contexto médico, mas num contexto de artes, não vejo porque usaríamos inteligência artificial para isso.

Acho que não só para a escrita, mas todos os outros processos envolvidos com a publicação de um livro, por exemplo o design da capa, tem havido algumas feitas por IA.

Sim, eu não concordo nada com isso.

Sim, acho que é uma colaboração de várias mentes humanas de várias áreas. Queria perguntar se tens algum envolvimento na criação das capas dos teus livros, porque por exemplo a capa de Priory é incrível.

Sim e eu tenho de atribuir parte do sucesso desses livros às capas, porque realmente são muito bonitas. O artista das capas é Ivan Belikov e o designer é David Mann, ambos da Bloomsbury Publishing. Posso dizer que são incríveis porque não tive nada a ver com elas, não sou nada artista! Há um número embaraçoso de leitores que me pedem para desenhar algo no livro deles e é mesmo vergonhoso. Ontem alguém me pediu para desenhar um dragão e não correu bem. A Bloomsbury pergunta-me sempre o que eu acho das capas e por exemplo a The Bone Season teve três capas diferentes e vão havendo trends diferentes. Eu não escondi que não gostei das capas brancas que deram a The Bone Season inicialmente mas o meu editor achou que eram as melhores para o mercado na altura e no fim do dia, eu aceito o conhecimento deles, mas eu prefiro muito mais o novo design que fizemos para as capas.

Por último, The Bone Season é uma mistura entre distopia e fantasia e Priory é fantasia épica. Sempre quiseste explorar fantasia só ou gostavas de voltar a explorar uma mistura de géneros?

A verdade é que eu fiquei surpreendida por ter escrito distopia, porque quando era mais nova eu lia muito fantasia, até estava mais virada para a ficção cientifica. Até comecei a escrever uma história sobre robôs porque estava na minha fase de Isaac Asimov, então sempre fui atraída por ficção especulativa. Mas acho que foi depois de ter lido The Handmaid’s Tale que me interessei pelo género de distopia e li muitos dos clássicos como A Clockwork Orange ou Never Let Me Go e foi aí que o meu interesse cresceu. E gostei muito de misturar isso com a escala de fantasia épica, porque normalmente distopia é muito fechado, explora apenas um local ou uma comunidade e eu gostava muito da ideia de criar vários países, várias cidades, ver mesmo dentro. Por isso, o objetivo era mesmo conseguir misturar os meus dois géneros favoritos. Não sei se voltaria a escrever esses géneros juntos, a maioria das minhas ideias são fantasia épica, mas suponho que o livro sobre Iris será uma mistura entre história e fantasia, já que a história é baseada numa deusa grega real. Adorava um dia escrever um romance histórico, seria divertido.

Créditos da imagem: Inês Salvado (Séries da TV)

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