A semana passada lançámos a primeira parte desta crónica e hoje cá estamos com mais seis séries que abordaram o tema da agressão sexual. Relembre-se que abril é o mês da consciencialização para crimes de teor sexual e um tema tão importante merece toda a atenção. As vítimas podem denunciar cada vez mais os seus agressores, mas ainda há muitos criminosos que ficam impunes. Podemos estar num bom caminho para a diminuição destes crimes, mas ainda não chega. Uma piada ordinária ou um apalpão NÃO são aceitáveis e ainda parece haver muito quem ache o contrário. O facto de haver crimes mais graves do que outros não retira importância a nenhum. Aqui ficam então mais algumas séries que se juntam às outras da semana anterior e se debruçam sobre o tema da agressão sexual.
Big Little Lies: A 1.ª temporada da série ficou conhecida maioritariamente pela violência doméstica, em especial devido às representações premiadas de Nicole Kidman e Alexander Skarsgård. Contudo, este não é o único tema importante abordado na série. Aliás, a história de Big Little Lies desenrola-se a partir da vida de Jane, uma jovem que foi violada e engravida do pequeno Ziggy. O aborto ainda é um tabu para muita gente, mesmo em situações de agressão como esta, mas, no fundo, é importante que toda a gente perceba que a decisão de abortar é sempre, unicamente, da mulher grávida e ninguém pode julgá-la seja qual for a sua decisão. Seis anos depois da violação, Jane decide procurar o seu agressor (que por sinal é o mesmo homem envolvido no caso de violência doméstica), enquanto lida com o trauma da agressão, que nunca ultrapassou completamente, chegando a pôr em causa a personalidade do filho por ter herdado genes “maus”. Numa pequena cidade que vive das aparências, repleta de famílias de classe alta e luxos, tudo podia correr mal a uma mãe solteira com poucas posses financeiras. Contudo, Jane consegue enfrentar o seu agressor e criar amizades verdadeiras, que destaco como uma das mensagens chave que a série transmite: a importância da união entre as mulheres.
Game of Thrones: Não é novidade para ninguém que Game of Thrones é uma série violenta e gráfica. Uma série que nem toda a gente consegue ver, existindo várias críticas negativas devido ao seu conteúdo. No entanto, deveria ser aceitável neste aspeto, pois apesar de ser um mundo e histórias fictícios, a série retrata uma época medieval em que os direitos humanos eram muito limitados, exceto para indivíduos do sexo masculino, caucasianos, heterossexuais, ricos e poderosos. Não é por acaso que a série é emitida num canal pago e com vários avisos para quem a vai ver. Devem existir poucas personagens que não tenham sofrido algum tipo de violência ao longo da série toda, incluindo agressões de cariz sexual. Até existem cenas de violação representadas por figurantes, como fundo de cena. Quanto às personagens principais, destacam-se quatro casos: Daenerys, órfã desde que nasceu, é vendida para se casar com Khal Drogo e forçada a consumar o dito casamento, ainda adolescente; Cersei, depois de uma vida toda a amar o irmão gémeo (mais do que é suposto amar-se um irmão), acaba por ser violada por ele, em frente ao cadáver do filho de ambos; Theon, que apesar dos seus muitos defeitos e de ter traído os queridinhos Stark, não merece o que lhe aconteceu – ser torturado e castrado a sangue frio por Ramsay; e, Sansa, que teve uma vida sofrida depois da morte do pai, conseguiu sobreviver às duas personagens mais detestáveis da série, Joffrey e Ramsay, abusada psicologicamente por um e fisicamente pelo outro, e ainda teve que aturar Littlefinger a tentar ser bem mais do que uma figura paternal.
Grey’s Anatomy: A veterana série médica sempre gostou de pegar em temas importantes e da atualidade e o ano passado debruçou-se sobre o assédio numa storyline que envolveu Harper Avery, avô de Jackson e o homem que deu nome aos importantes prémios de que ouvimos falar várias vezes na série. Foi a partir da chegada de Marie Cerone ao Seattle Grace Hospital para se encontrar com Meredith a propósito de uma autorização para o uso de um polímero para investigação que tudo se desenrolou. Marie tinha sido assediada sexualmente por Avery e paga para manter o silêncio, tendo ainda ficado de fora à corrida para um prémio Harper Avery por um trabalho que desenvolvera em conjunto com Ellis. São tantas as vezes em que homens como Avery se aproveitam da impunidade que os seus nomes e poder lhes conferem para fazerem o que quiserem, ficando tantas vezes impunes! Neste caso, a história veio a público e houve um total de 37 mulheres a chegarem-se à frente para denunciar que foram assediadas, mas Avery já estava morto e nunca teve de lidar com as consequências dos seus atos. Se em pleno século XXI as vítimas ainda têm tanta dificuldade em serem levadas a sério, é fácil de imaginar como seria há 30 ou há 40 anos atrás. Catherine explicou-o bem: “Há 30 anos atrás, ser assediada no trabalho, ser apalpada, não era algo que pudéssemos protestar. Era algo que tínhamos de engolir com o nosso café da manhã”. Ainda é. Para muitos, comentários indecentes, insinuações sexuais ou toques ainda são vistos como inofensivos, mas não são. Não só é indecente como também é crime.
Engrenages: No geral, a 6.ª temporada da série francesa baixou um pouco a fasquia em relação a algumas das anteriores, mas teve uma storyline muito interessante em volta da violação de Joséphine, uma das personagens principais. Ela é uma mulher extraordinariamente forte que não gosta de mostrar sentimentos e muito menos demonstra que precisa de alguém. A vida não a tratou muito bem e ela tornou-se desconfiada e cínica em relação aos outros. Nós audiência não vimos o que aconteceu, nem tão pouco Joséphine sabe quem foi o seu agressor, mas é claro para ambos, espectadores e ela, que houve um ataque. A advogada inicialmente pensa que foi um colega, mas este tem um álibi sólido e tudo se torna claro quando descobre um dos seus brincos no carro do patrão. Ele é um daqueles patifes que se nota com alguma facilidade e até é o réu num processo de assédio sexual onde Joséphine o defende. Tudo o que Joséphine faz é totalmente de acordo com aquilo que a personagem é e por isso que parece tão realista. Ela odeia ver-se como uma vítima e ainda odeia mais que a vejam como tal. Não confia na polícia enquanto instituição, embora confie numa polícia em particular, Laure, e esta é a única pessoa que faz alguma ideia do que Joséphine está a passar. No entanto, ela quer assumir as rédeas da situação e, em vez de deixar Laure investigar, pega nas chaves do carro do agressor e atropela-o com o seu próprio carro. Não vamos aqui apoiar tentativas de homicídio, mas confesso que senti uma grande satisfação ao ver Joséphine fazer aquilo. O seu agressor é o tipo de sacana que parece sempre safar-se da porcaria que faz e ela não quis permitir que ele saísse impune disto. Só que o sacana não morreu e quem está detida é ela. Para se defender, ela irá ter que admitir o porquê de ter feito o que fez e não sei até que ponto estará preparada para isso. Aquilo que aquele homem lhe fez destruiu-a de tal forma que foi como se ela já não tivesse nada a perder.
Orange Is the New Black: Charlie Coates até parecia um tipo simpático, mas é mais um daqueles homens que quando estão numa situação em que exercem poder sobre os outros não se inibem de o usar. Para começar, qualquer tipo de envolvimento entre um guarda prisional e uma reclusa é proibido e uma relação sexual configura um crime de violação. Daya e Bennett tiveram uma relação e fizeram sexo, mas ambos o queriam, gostavam um do outro. É errado devido à tal situação de poder de um sobre o outro, mas não me faz confusão. Em qualquer outro contexto, no mundo lá fora, não seria ilegal, são ambos adultos. No entanto, as coisas entre Coates e Pennsatucky foram muito diferentes. Primeiro começaram como amigos e depois começou a formar-se ali um clima, até que tudo descambou. Coates começou a tratar mal Pennsatucky, gritando-lhe, mostrando-se agressivo e humilhando-a, para depois a violar. Não sei se foi um acaso ou se Coates escolheu Pennsatucky por, de alguma forma, ela ser o tipo de rapariga que já foi tão maltratada que encara as coisas horríveis que lhe fazem como se fossem culpa dela. Não, a culpa não é dela por ter flirtado, não é dela por ter sorrido para Coates e não é dela por ter confiado que ele podia ser diferente. Não é! Ele é um homem mau que fez coisas inenarráveis a uma mulher que ainda por cima gostava dele e que está praticamente sozinha neste mundo. Eu sei que ela o perdoou, mas acho muito mais saudável a forma como Boo encara as coisas. O tipo de humilhações a que Coates vexou Tiffany é imperdoável.
Outlander: Não é possível imaginar como é que seria viver no ano de 1743, principalmente na pele de uma enfermeira que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e é transportada de 1945 para o passado. Isto é o que acontece à protagonista de Outlander, Claire, que tem de lidar com a intolerância, o racismo e o sexismo existentes nessa época, muitas vezes colocando-a em perigo por ter ideais completamente diferentes. Claire passa por diversas tentativas de violação durante as temporadas, mas acaba sempre por se safar, felizmente. Já a sua filha, Brianna, não tem a mesma sorte. Pouco depois de ser transportada de 1969 para 1769 à procura dos seus pais e na mesma noite em que se casa com Roger, Brianna é violada por Bonnet, no escritório de um bar. Apesar dos seus sons angustiados, os clientes do bar continuam as suas vidas como se aquilo fosse um acontecimento natural e nada relevante. Para além de Brianna, existe outro momento bastante marcante na série no que diz respeito a agressão sexual. Durante vários episódios e cenas assustadoramente específicas, assistimos a Jamie, enquanto prisioneiro de Randall, a ser violado e torturado física e mentalmente por ele. Adicionalmente, a série ainda mostra, e de uma forma bem escrita, a batalha que Jamie trava para recuperar desse ato violento, com a ajuda de Claire. É óbvio que damos mais relevo aos casos de violência sobre mulheres devido às estatísticas serem significativamente superiores, mas por vezes esquecemo-nos que também existem casos de agressões, tanto físicas como sexuais, em relação a homens e não deixam de ser igualmente traumáticas.
Ana Velosa e Diana Sampaio