Abril é o mês que todos os anos se dedica a consciencializar o público para a problemática da agressão sexual. Foi com o Presidente Barack Obama, em 2009, que este se tornou o mês oficial da causa, mas a luta pela consciencialização começou muito antes. Seria nos anos 70, uma época em que o ativismo social se manifestava em força, a verificar-se um crescimento significativo de esforços para a prevenção e consciencialização para os crimes de cariz sexual e a traçar-se o caminho que percorremos até hoje. Não podemos esquecer a importância que movimentos como o Time’s Up e o #MeToo tiveram para esta causa, mas a luta não é de agora e não pode terminar aqui, porque ainda muito há para ser feito.
Achámos que um tema tão relevante merecia um pouco de atenção, por isso decidimos refletir sobre algumas séries que exploram a violência sexual. Haveria mais, muitas mais, mas escolhemos dez – que vamos dividir em duas edições – que achámos especialmente relevantes na abordagem a este cancro da sociedade.
13 Reasons Why: A popular série da Netflix causou polémica, mas a verdade é que gerou o debate sobre temas tão importantes como o bullying e a violação sexual. Tivemos a violação perpetrada por Bryce a Jessica e a Hannah, por exemplo. No entanto, importa ressalvar que a lição a retirar desta série é o reflexo de uma sociedade em que é frequente culpabilizar as vítimas, transformando-as em oferecidas, e defender o agressor. Aos 18 anos, Bryce já revelou ser um verdadeiro sociopata que não se preocupa com o sofrimento alheio e faz uso da popularidade e poder junto dos seus pares e da comunidade escolar para vender uma imagem de rapaz decente que em nada corresponde à realidade. Ele violou Jessica quando esta estava bêbeda, enquanto o seu melhor amigo, namorado de Jessica, sabia o que estava a acontecer, não tendo sido capaz de fazer nada para o impedir. Outro dos atos mais desprezíveis de Bryce foi a violação a Hannah, o que acaba por ser a última gota para uma jovem a equacionar o suicídio. Antes disso, ele já tinha feito circular por toda a escola fotos de Hannah que eram privadas, foi o responsável pelo início dos rumores que diziam que ela era uma oferecida e já a tinha tocado de forma inapropriada também. Nada do que se dizia de Hannah era verdade e mesmo que ela tivesse andado com todos os rapazes do liceu, isso só a ela dizia respeito e em momento absolutamente algum dá a Bryce o direito de fazer avanços. No entanto, o julgamento da 2.ª temporada basicamente é dedicado à destruição da imagem de Hannah e torna-se difícil de ver o quanto as pessoas se deixam facilmente manipular quando lhes contam uma série de mentiras. Por fim, é inevitável falar sobre o tema da agressão sexual sem mencionar o que fizeram a Tyler. Esta é mais uma cena que chocou muitos dos espectadores da série. Penso que isto não se deve apenas à sua violência, mas por ainda estarmos poucos habituados a ver homens (neste caso um rapaz) a sofrer este tipo de abusos. Tyler é espancado e depois penetrado com uma esfregona por Montgomery e os seus amiguinhos numa das cenas mais complicadas de assistir da 2.ª temporada. Tyler não é nenhum anjinho e não podemos esquecer-nos de que violou constantemente a privacidade de outros tirando fotografias íntimas, mas nada, absolutamente nada, justifica o que lhe fizeram.
Grey’s Anatomy: Há cerca de duas semanas, o drama médico proporcionou-nos o melhor episódio dos últimos anos e um dos mais relevantes de toda a série. Todo o enredo de Silent All These Years se centrou no tema da agressão sexual, que foi brilhantemente abordado. Somos apresentados a Abby, uma nova paciente que aparece no hospital com um corte na cara, mas esse pequeno ferimento, o único visível, estava longe de fazer prever a brutalidade com que tinha sido atacada. Não só foi espancada, como violada. Como qualquer vítima, estava assustada e precisava de sentir que aquele hospital era um sítio seguro. Jo fê-la sentir isso, deu-lhe aquilo de que ela precisava naquele momento para sobreviver ao que lhe tinha acontecido. Teddy e Jo foram as médicas que qualquer mulher numa situação daquelas gostaria de ter. Não a fizeram falar sobre o que tinha acontecido, não a pressionaram, limitaram-se a guiá-la pelos procedimentos e tiveram uma sensibilidade incrível em todos os momentos, nomeadamente enquanto recolhiam as amostras para fazer um kit de violação. A cena em que juntaram a equipa feminina do hospital no corredor – nada de homens, porque o rosto de cada homem recordava à paciente o seu agressor – foi poderosíssima. Afastaram-se dos protocolos, mas os protocolos nem sempre são do melhor interesse dos pacientes e aqui a paciente esteve sempre em primeiro lugar. Depois, como enredo secundário – embora também com grande destaque – tivemos Jo, em flashbacks, com a mãe. Entre outras coisas, houve uma partilha de histórias. A médica contou os abusos que sofreu às mãos de Paul; a mãe disse que Jo tinha sido fruto de uma violação. Houve espaço para histórias trágicas, mas também houve grandes momentos de aprendizagem. É fantástico que Ben e Bailey tenham decidido que era importante falar com Tuck acerca das regras para uma boa relação, do respeito que tem de haver e do consentimento. Todos os pais se deviam sentar com os filhos rapazes a ter este tipo de conversa. E todos os pais deviam sentar-se com as filhas e ter com elas a mesma conversa também. E deviam acrescentar a essa conversa que flirtar, usar uma saia curta, percorrer uma rua sem iluminação ou beber num bar não são crime. Uma rapariga devia poder vestir o que quisesse e andar em segurança sem que ninguém se ache no direito de fazer uso do seu corpo. Nenhuma palavra ou nenhuma ação são uma desculpa que se possa usar para legitimar uma agressão sexual ou descredibilizar uma denúncia.
Scandal: Tal como o título indica, a série aborda escândalos, focando-se maioritariamente em casos que envolvem pessoas importantes da política. No centro das atenções temos Olivia Pope, especialista nestes casos, que bem cedo descobrimos que é amante do presidente dos Estados Unidos, Fitz. Apesar desta traição, é difícil criar empatia pela mulher dele, Mellie, que é apresentada como forte e ambiciosa, mas fria e agressiva. Contudo, depois de se conhecer a história dela e tudo o que sacrificou para que o marido chegasse a presidente, é impossível não simpatizar com a personagem. Vários anos antes, Mellie e Fitz estão apaixonados e a planear a candidatura dele para governador da Califórnia. O pai de Fitz, Jerry, um senador, está a ajudá-los na estratégia para a candidatura, mas, em vez disso, humilha constantemente o filho. Numa das noites, depois de Fitz ir dormir, Jerry viola Mellie, numa cena gráfica que levou vários críticos a condenar a série. Em troca do seu silêncio, Mellie negoceia com Jerry de forma a que apoie na totalidade Fitz e o ajude a ganhar a eleição para governador. Ninguém pode julgar o que leva uma mulher a não reportar uma agressão sexual. No entanto, a percentagem de mulheres que mantêm o silêncio ainda é bastante alta, por isso não é de bom grado quando se vê um violador numa série a sair impune. É importante que haja uma mensagem positiva de coragem a todas as mulheres e que atos como este tenham consequências graves para o agressor.
Sweet/Vicious: A série de apenas uma temporada explora quase em exclusivo o tema da agressão sexual, centrando-se em duas jovens universitárias que se tornam vigilantes secretas e fazem justiça pelas próprias mãos a agressores impunes. O tema é abordado de forma correta e genuína, sem ser sensacionalista, em grande parte devido a ser criada e escrita por uma equipa feminina. Para além disso, também explora o stress pós-traumático resultante de cada caso, mostrando que nem toda a gente lida da mesma forma com um trauma, e ainda refere o tema das praxes universitárias, que muitas vezes ultrapassam os limites e só servem para humilhar e traumatizar quem passa por elas. Ao longo da temporada vê-se o quão fortes podem ser as sobreviventes de uma violação. Jules, uma das protagonistas, é uma delas, quando não obtém justiça devido ao seu agressor ser um desportista popular e namorado da sua melhor amiga, que não acredita nela. Jules junta-se nesta luta a Ophelia, uma hacker de cabelo azul, depois de descobrirem uma parede numa casa de banho feminina, coberta de nomes de estudantes violadores. Não é mistério nenhum que o desporto tem uma grande importância nas universidades norte-americanas. As universidades lutam entre si para captar os melhores jogadores mal acabam o secundário. O problema começa quando esses jogadores são levados ao colo nas notas para poderem jogar ou pior ainda, quando cometem um crime e são isentos para que a universidade ganhe o campeonato. A justiça ainda apresenta muitas falhas no apoio às vitimas, tanto na administração da universidade como na própria polícia. É preciso lembrar que uma violação nem sempre mostra sinais médicos de que aconteceu, sendo normalmente a palavra de uma pessoa contra a outra e infelizmente ainda vivemos numa sociedade que toma partido do suposto agressor e faz comentários do género: “Ela foi para o quarto dele, do que estava à espera?”. No caso das universidades, ainda obrigam as vítimas a partilhar o mesmo espaço com os seus agressores durante anos. Por fim, a série tem a capacidade de mostrar que no meio de muitos homens machistas e agressores, também existem muitos que são boas pessoas e que o mundo não está perdido de todo, apresentando ainda uma vertente cómica que não se sobrepõe à seriedade das situações mais sensíveis.
The Handmaid’s Tale: Os arquitetos de Gilead podem encarar o seu regime como uma forma de salvar os Estados Unidos do pecado e da corrupção, mas esta não é mais do que uma teocracia arcaica que humilha e subjuga as mulheres como se da Idade Média se tratasse. A religião é apontada como o principal pilar de Gilead, mas aquilo que sustenta o regime é algo bem diferente. Os homens detêm todos os direitos e as mulheres, bem, estão à mercê deles, sejam esses homens os seus maridos ou os seus comandantes. A infertilidade é apontada como culpa das mulheres e as poucas que ainda são capazes de ter filhos veem-se forçadas a uma existência degradante que envolve violações sistemáticas e quase coreografadas para as quais, ainda por cima, têm a assistência da esposa do homem em questão. Todos desempenham o seu papel nesta sociedade, mas só os elementos do sexo masculino têm uma palavra a dizer, uma vez que são eles que ditam as leis e que detêm todos os cargos importantes. No entanto, como em todos os regimes totalitários, também em Gilead há sinais de revolta. Pequenos gestos e outros não tão pequenos mostram que há pessoas dispostas a lutar contra o regime que lhes tirou tudo e outras começam a abrir os olhos e a perceber o quão errados são os princípios de Gilead. São inúmeras as cenas de violação e de outras humilhações que personagens como June, Emily, Janine, Moira ou Eden sofreram, mas fica indubitavelmente na memória o momento em que a protagonista, já num estado avançado de gravidez, é violada como forma de induzir o parto. June a implorar a Serena que não faça aquilo, Serena a agarrá-la, para que ela não se consiga soltar, Fred a ser o porco nojento que é sempre… É horrível! Esta é uma série difícil de ver pela crueldade do mundo que nos apresenta, mas serve como uma chamada de atenção para os perigos do radicalismo. Gilead não nasceu de um dia para o outro e sim de forma gradual, mas as pessoas só ‘acordaram’ verdadeiramente quando já era demasiado tarde.
Para a semana voltamos com a segunda parte desta crónica, onde continuaremos a explorar o tema. Deixámos deliberadamente de fora séries como Law & Order: SVU e Private Practice, uma vez que já tinham sido abordadas anteriormente no que diz respeito à agressão sexual.
Ana Velosa e Diana Sampaio