Quando as séries são uma vivência à séria
| 10 Jun, 2017

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Quantas vezes é que nós jovens ouvimos os mais velhos referirem-se à nossa geração como perdida? A dizerem que não temos valores e que não sabemos o que é ter uma vida difícil? É certo que temos o privilégio de ter nascido e vivido em liberdade, mas também somos a geração que vive o drama do desemprego, dos trabalhos precários e que cresceu sob o perigo constante do terrorismo.

Os nossos avós e pais viveram num período de ditadura em que tinham de medir o que diziam, enquanto nós temos a liberdade de dizer o que pensamos e a internet à nossa disposição para o fazermos. Eles clamavam pela liberdade de opinião e de imprensa, pelo direito de eleger os próprios governantes, pela liberdade de lerem os livros que queriam, de ver os filmes que preferiam, de ouvir a música de que gostavam. Nós temos tudo isso, sim, mas a sociedade ainda precisa de percorrer um longo caminho.

Coisas que para nós são dados adquiridos não o eram para as gerações mais velhas, mas há direitos que nós defendemos e que eles nunca irão compreender. Aquilo que nos move pode não ser o mesmo que movia as gerações anteriores, mas não digam que não temos valores. Porque temos! Mas o propósito desta crónica não é o de defender uma geração, mas sim mostrar o grande impacto que as séries operaram na minha vida e os valores que aprendi com elas. Já vou lá chegar, dêem-se só alguma margem de manobra!

Eu vivi a minha infância numa época em que as consolas, os Game Boy, a televisão e telemóveis que pareciam tijolos eram o que de mais avançado tecnologicamente existia. Chegada à adolescência, o uso do computador vulgarizou-se, a internet chegou às casas, séries internacionais começaram a acompanhar-nos e, mesmo para quem nunca tinha saído do país ou até das suas cidades, outras realidades completamente diferentes faziam-se mostrar. Livros, filmes e séries com temas tabu, nunca antes abordados, viram a luz do dia. Mesmo que não se falasse sobre certas coisas, começava a ser impossível ignorar a sua existência. Antes da minha adolescência não me lembro de a homossexualidade, a bissexualidade e a transexualidade serem realmente faladas. Eram mais o tipo de coisa sobre as quais se faziam piadas, como se não fossem importantes o suficiente para serem debatidas e só servissem o propósito de ser alvo de chacota. Eu também não pensava muito nesses temas, sobretudo porque nunca tinha sido exposta a eles. E talvez porque quando somos miúdos não damos às coisas a mesma importância que lhes dedicamos mais tarde.

É precisamente aí que as séries assumem um papel preponderante na minha vida. Mais do que os filmes e os livros, elas abriram-me horizontes. Eu leio livros numa semana e um filme dura no máximo três horas, mas uma série acompanha-me durante muito mais tempo. Os personagens crescem ao longo dos anos e não estou a exagerar quando digo que cresci com eles.

Acho que já mencionei aqui isto, mas vou fazê-lo novamente, porque é daqueles momentos marcantes numa série e que nunca vou esquecer. Há uns dez anos, ainda eu andava no liceu, a RTP2 andava a transmitir os novos episódios de ER, uma série da minha infância de que sempre gostei e que imediatamente recomecei a acompanhar. Não me lembro de muita coisa para além disso, mas a Dr.ª Kerry Weaver tinha uma namorada e depois tiveram um filho. Posteriormente, a namorada dela, que era a mãe biológica do bebé, morreu, o que despoletou uma guerra judicial pela custódia da criança. De um lado estava a médica e do outro os pais da falecida namorada de Kerry. E aquilo revoltou-me! Aquela criança foi criada por duas mulheres que decidiram formar uma família, por isso que diferença fazia que uma delas tivesse morrido? Kerry continuava a ser mãe do bebé. Porque é que isso estava sequer em discussão? Era o mesmo que à maioria de nós, que tem pai e mãe, privarem-nos de um deles. Fez-me pensar que as leis são injustas e não se preocupam nada com aquilo a que as pessoas têm o hábito de chamar “o superior interesse da criança”. Isso fez muita confusão na minha cabeça idealista de adolescente.

Bem, suponho que continuo a ser um pouco idealista! Uma cena numa série de televisão e a comunidade LGBT ganhou em mim uma apoiante. E uma espécie de membro, uma vez que apoiar os direitos de uns parece incluir-nos imediatamente nesse grupo. Suponho que então temos que ser negros para apoiar os direitos dos negros e gays para apoiar os direitos da comunidade homossexual. Não dá para ouvir o meu tom irónico, mas gostava que fosse possível.

Seria de julgar que no século XXI já tivéssemos evoluído o suficiente para deixar de julgar os outros pela sua orientação ou identidade, mas não. Afinal a igualdade não é para todos, é só para alguns. O que continuo a não entender é porque é que parece mais ou menos assente que o racismo é errado, mas a homo e a transfobia não. Não deviam todas as formas de discriminação ser igualmente erradas?

Mas se ao longo desta última década houve um desfile de personagens gay, lésbicas e bissexuais no mundo das séries que me conquistaram e arrastaram para as suas vidas como Callie Torres, Lana Winters, Piper Chapman, Alex Vause, Bette Porter, Stef e Lena Adams-Foster, Patsy Mount, Ian Gallagher, Mickey Milkovich e Kevin Walker, só mais recentemente me familiarizei com a realidade trans. Aliás, Nomi Marks foi o único motivo para ter continuado a ver Sense8 para além dos primeiros episódios.

Como é que eu podia torcer por certos personagens e depois desligar-me da realidade que pessoas como eles enfrentam? Como é que podia achar Nomi uma das personagens mais fascinantes da atualidade sem respeitar e defender o direito de cada um a sentir-se bem no seu próprio corpo, mesmo que não seja o corpo com que nasceu? Que direito temos de nos intrometer na vida dos outros e de dizer que algo não está certo, quando a única coisa que as pessoas deviam ser capazes de ver que é errado é o facto de haver adolescentes que se magoam e se suicidam porque acham que não vão ser aceites pelos pais, pela família, pela sociedade. O que é errado é haver pessoas a viverem dentro do armário e a negarem a si mesmas a liberdade de serem quem são por causa do que os outros diriam e da forma como as tratariam. Nenhuma pessoa devia ter de viver assim.

Talvez não tivesse precisado de séries para preocupar-me com estes assuntos, mas elas humanizaram-mos como não seria possível de outras formas. Para quem julga que ver séries é uma perda de tempo, não é! Acho genuinamente que a televisão (os filmes e os livros também) é um excelente veículo para marcar a diferença. Se uma série tiver a capacidade de marcar uma única pessoa da mesma forma que ER, Grey’s Anatomy, The Fosters, Sense8 e muitas outras me marcaram, já será positivo. E se séries como 13 Reasons Why tiverem a capacidade de mostrar a alguém o impacto que podemos ter na vida dos outros, talvez um bully mude o seu comportamento e talvez um miúdo que é gozado e não se sente bem com ele próprio perceba que não está sozinho e que as coisas vão melhorar.

Diana Sampaio

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